Direitos humanos
Fraturas expostas do racismo à brasileira. Até quando?
O racismo à brasileira não grita — sussurra; não se assume — disfarça-se; e, por isso mesmo, torna-se o mais cruel dos preconceitos.


O racismo, no Brasil, é uma doença antiga que atravessa séculos, camuflada sob a capa da cordialidade nacional. É um veneno que se disfarça em elogio, que se mascara em silêncio, que prefere as sombras do inconsciente às luzes do confronto aberto.
É o racismo que nos acompanha desde a infância, tão presente quanto sarampo ou catapora, tão naturalizado quanto as dores da primeira dentição. Crescemos com ele impregnado em nossas relações, nos ditados populares, nas piadas repetidas, nos padrões de beleza impostos. E, de tão enraizado, já não percebemos quando o praticamos. Mas a invisibilidade não anula a culpa — apenas a agrava.
O racismo à brasileira é vil porque tenta sempre escapar ileso, fingindo inocência. É torpe porque golpeia no momento inesperado, humilhando a vítima sob o disfarce de uma suposta normalidade. É cínico porque sobrevive alojado em nosso inconsciente, como aquele Voldemort que se escondia no turbante do velho professor em Harry Potter: invisível, mas ativo, manipulando, sussurrando, maquinando o mal.
Será que não carregamos, cada um de nós, um Voldemort de estimação em nossas cabeças? Quantas vezes não repetimos frases ou pensamentos que, quando examinados de perto, revelam a persistência da desigualdade racial que fingimos já ter superado?
A Casa Universal de Justiça, em 1986, alertou que “o racismo, um dos males mais funestos e persistentes, constitui obstáculo importante no caminho da paz” e que sua prática “consuma uma violação demasiado ultrajante da dignidade do ser humano para poder ser tolerada sob qualquer pretexto”. Quase quarenta anos depois, a advertência permanece de urgência desconcertante, como se escrita hoje.
As estatísticas mostram o abismo: de acordo com a pesquisa da antropóloga Lilia Schwarcz, 99% dos entrevistados afirmam não ser preconceituosos, mas 98% dizem conhecer alguém que é. Eis o paradoxo: a nação inteira se declara isenta de racismo, mas aponta o vizinho como culpado. A contradição não resiste a um minuto de silêncio interior.
No Brasil, os números recentes escancaram a desigualdade racial. Segundo o IBGE, pretos e pardos representam 56% da população, mas respondem por mais de 75% entre os 10% mais pobres. No mercado de trabalho, o rendimento médio de pessoas negras equivale a pouco mais da metade do rendimento de pessoas brancas. Quando se trata de violência, a chaga é ainda mais profunda: o Atlas da Violência 2024 mostra que jovens negros têm 2,6 vezes mais chances de serem assassinados do que jovens brancos. No sistema prisional, cerca de 67% da população carcerária é negra. Esses dados não apenas confirmam a persistência do racismo estrutural, mas revelam sua face mais cruel: a naturalização da desigualdade como se fosse destino inevitável.
Cansado de ouvir a ladainha dos que negam sua própria sombra, recordo os versos de Telles Junior: “Meu peito é matriz onde canta Zumbi sem toque de sinos, com imagens de Vida!”. Em quantos peitos ainda ressoa a canção de Zumbi dos Palmares, aquele herói enlouquecido de esperança, que sonhava uma nação praticante da unidade racial?
Antes de nos apressarmos em dizer “não sou racista”, convém um breve checklist:
Quantos dos meus amigos são negros, afrodescendentes?
Quantos amigos meus filhos e filhas têm que sejam negros?
O que aprendi com Gandhi, Martin Luther King, Enoch Olinga, Nelson Mandela, Louis Gregory?
O que sinto ao assistir a filmes como A cor púrpura, 12 anos de escravidão, Selma ou Histórias cruzadas?
Reconheço Machado de Assis e Lima Barreto como afrodescendentes ou os embranqueci em minha memória cultural?
Responder a essas perguntas é um começo. Se sairmos bem, talvez possamos dizer — com algum convencimento — que não somos racistas.
Mas a verdadeira medida de uma vida superior não está na cor da pele, no sangue ou nos sobrenomes herdados. Está na quantidade de virtudes morais e espirituais que colocamos em ação, na força do caráter que se revela nos pequenos gestos diários, na capacidade de viver sem a ilusão de uma falaciosa superioridade racial.
Porque, no fundo, não se trata apenas de sermos justos com os outros. Trata-se de sermos justos conosco mesmos: libertar nossas próprias sombras para, enfim, vivermos à altura da dignidade humana que afirmamos defender.
Vamos direto ao ponto:
O racismo à brasileira veste a pele da cordialidade, mas carrega séculos de exclusão, humilhação e a persistente negação de nossa própria sombra.
https://www.brasil247.com/blog/fraturas-expostas-do-racismo-a-brasileira-ate-quando
08 de outubro
Autismo vira trincheira de desinformação no coração da Casa Branca
Trump e Kennedy Jr. instrumentalizam o autismo, atacam ciência consolidada e deixam milhões de famílias reféns de ideologias, desinformação e decisões que fragilizam a saúde pública.


Na sala de imprensa da Casa Branca, Donald Trump decidiu dar novo fôlego a teorias sem lastro científico. Ao lado de Robert F. Kennedy Jr., seu secretário de Saúde, e do comissário da FDA, Marty Makary, declarou que o paracetamol — princípio ativo do Tylenol — estaria entre as causas do autismo. Não apresentou evidências, mas decretou em tom imperativo: “Não tomem Tylenol. Lutem como diabos para não tomar”.
A cena não era inédita. Lembrou os tempos da pandemia, quando o então presidente sugeria ingestão de desinfetantes e tratamentos improvisados. Agora, o palco se repete, mas o alvo é outro: uma das condições neurológicas mais estudadas e, ainda assim, menos compreendidas da atualidade.
Eu já escrevi neste mesmo ano sobre o caos que assola a saúde pública nos Estados Unidos. Hoje volto ao tema, não por gosto, mas por indignação. Tenho amigos com diferentes graus e espectros de autismo. Sei o quanto é prejudicial e nefasto reduzir essa realidade complexa a slogans políticos. Quando líderes máximos da nação, que há muito tempo flertam com o obscurantismo e com o negacionismo científico, tratam o assunto dessa forma, o prejuízo é devastador: desorienta famílias, fragiliza políticas públicas e transforma vidas em moeda de troca partidária.
Vacinas e Tylenol na mira presidencial
Kennedy Jr. não perdeu a oportunidade de ressuscitar o mito mais resistente da saúde contemporânea: o suposto elo entre vacinas e autismo. Trump o acompanhou, exagerando a ponto de dizer que bebês receberiam “80 vacinas de uma só vez”. Afirmações sem respaldo, mas carregadas de efeito político.
Três décadas de estudos em diversos países já descartaram qualquer vínculo entre imunização infantil e autismo. Mesmo assim, o fantasma retorna cada vez que convém a determinadas agendas. A consequência é imediata: erosão da confiança pública e risco real de retorno de doenças erradicadas.
Enquanto isso, a FDA buscou um ponto de equilíbrio, afirmando que a possível relação entre paracetamol e autismo continua sendo “área em debate científico”. Não mudou protocolos médicos: o uso deve ser mínimo, em doses pequenas e apenas quando necessário. Pesquisas recentes sugerem associações tênues, mas nenhuma prova de causa e efeito. Um grande estudo na Suécia, com 2,5 milhões de crianças, chegou a encontrar vínculos fracos — que desapareceram quando comparados irmãos da mesma mãe, sinal de que a genética materna explica mais do que qualquer comprimido.
A revisão publicada por pesquisadores de Harvard e do Mt. Sinai examinou 46 estudos. Em pouco mais da metade, havia alguma associação entre paracetamol e distúrbios do neurodesenvolvimento. Mas os próprios autores foram claros: “Não podemos responder à questão da causalidade”. Ainda assim, Trump e Kennedy Jr. usaram o estudo como se fosse prova definitiva.
Ciência pressionada, indústria acuada
A indústria reagiu rápido. A Kenvue, empresa que herdou o Tylenol da Johnson & Johnson, classificou de irresponsáveis as declarações da Casa Branca. O argumento é óbvio: o paracetamol está em mais de 600 produtos e é consumido semanalmente por um quarto dos adultos americanos. Minar a confiança nesse medicamento é abrir uma crise sanitária e econômica de grandes proporções.
O governo, por sua vez, tentou equilibrar a ofensiva contra o Tylenol com o anúncio de um suposto avanço: a aprovação da leucovorina, droga antiga derivada de vitamina B, para alguns casos de autismo em crianças com deficiência de folato cerebral. Os estudos até aqui envolveram apenas 80 participantes. O entusiasmo oficial contrasta com a prudência da ciência, que insiste: não é cura, não é revolução, é apenas possibilidade restrita a casos muito específicos.
Eu me pergunto, diante desse cenário, até que ponto a sociedade norte-americana está preparada para enfrentar não apenas a complexidade científica do autismo, mas a manipulação política que o cerca. A cada anúncio performático, a saúde pública é empurrada para o terreno do improviso, e milhões de famílias são deixadas sem respostas consistentes.
Trump governa por meio de frases de efeito. Kennedy Jr. mantém-se como porta-voz do negacionismo mais rentável: aquele que dá votos. A ciência, com sua lentidão e sua necessidade de evidências, é colocada na defensiva. E eu não consigo aceitar que amigos meus — e milhões de outros cidadãos — tenham suas vidas atravessadas por esse jogo de conveniências. O autismo exige estudo sério, investimento contínuo e compaixão humana. O que vimos na Casa Branca foi o contrário: espetáculo político travestido de política de saúde.
23 de setembro de 2015
Duas Castas no Brasil: Políticos Blindados, Povo Exposto, por Washington Araújo
PEC da Bandidagem aprovada na Câmara dos Deputados cria elite intocável, protegendo corruptos enquanto o povo enfrenta a lei nua e crua. Vergonhoso é pouco.


Caetano Veloso, com suas palavras vibrantes, convoca a sociedade à ação: “A PEC da Bandidagem, que é o que é, tem que receber uma resposta saudável. Uma manifestação de que o povo brasileiro não admite isso. Esse projeto de anistia, levado às pressas, não pode ficar sem resposta. A gente tem que ir pra rua, pra frente do Congresso.”
Aos 83 anos, Caetano, junto a Chico Buarque, 81, representa a resistência artística que enfrentou a ditadura militar (1964-1985). Suas canções, como “Podres Poderes” de Caetano – “Enquanto os homens exercem / Seus podres poderes” – e “Apesar de Você” de Chico – “Apesar de você / Amanhã há de ser / Outro dia” – foram hinos contra a opressão, inspirando a redemocratização.
Infelizmente, as novas gerações de artistas brasileiros, em sua maioria, parecem alheias às lutas por justiça, democracia e igualdade. Enquanto o país clama por direitos iguais, educação e saúde para todos, muitos optam pelo silêncio ou pelo entretenimento superficial. Esse vazio contrasta com a urgência de combater retrocessos como a PEC da Bandidagem, aprovada pela Câmara em 16 e 17 de setembro de 2025.
As duas castas
A PEC 3/2021, apelidada de “PEC da Bandidagem”, altera os artigos 53 e 102 da Constituição, criando duas castas: políticos do Congresso, blindados por privilégios, e o povo, submetido à lei comum. Seu texto é um monumento à impunidade, protegendo crimes como desvios de emendas parlamentares e mau uso do dinheiro público, que passam a recair apenas sobre 99% da população brasileira.
O primeiro aspecto danoso da PEC é a exigência de licença prévia da Casa Legislativa para processar deputados e senadores criminalmente, exceto em flagrante inafiançável (§ 2º do art. 53). Isso permite que corruptos escapem de investigações rotineiras, enquanto cidadãos comuns enfrentam a justiça imediata. A lei, assim, se torna desigual, favorecendo uma elite política em detrimento do povo.
Segundo, a PEC estabelece até 90 dias para a Casa decidir, por votação secreta e maioria absoluta, sobre a licença (§ 3º). Esse prazo introduz atrasos deliberados, suspendendo a prescrição durante o mandato (§ 4º). Um político pode postergar seu julgamento por meses, privilégio inconcebível para o trabalhador acusado de um delito menor, como furto.
Terceiro, a restrição à prisão apenas em flagrante inafiançável, com votação secreta em 24 horas sobre a custódia (§ 5º), facilita a liberação de criminosos influentes. Isso abre brechas para infiltrações do crime organizado no Parlamento, como alertam críticos. A PEC, assim, enfraquece o combate à corrupção sistêmica, protegendo interesses escusos de políticos poderosos.
Quarto, o foro privilegiado é estendido a presidentes nacionais de partidos (art. 102, I, b), blindando caciques partidários de julgamentos comuns. Essa medida perpetua oligarquias políticas, afastando a justiça de figuras influentes. A desigualdade perante a lei se agrava, consolidando a divisão entre uma casta intocável e o povo vulnerável às punições.
Quinto, a proibição de medidas cautelares, como buscas e apreensões, sem origem no STF (§ 1º do art. 53) limita investigações de corrupção. Evidências de desvios em emendas parlamentares ou lavagem de dinheiro ficam protegidas. A PEC, portanto, é uma barreira à transparência, favorecendo crimes financeiros que prejudicam saúde e educação do povo.
Essa PEC não é uma reforma, mas um ataque à democracia, ecoando os “podres poderes” de Caetano. Como Chico cantava, “Você que inventou a tristeza / Ora, tenha a fineza / De desinventar”, devemos desinventar essa injustiça. A sociedade deve ir às ruas, como Caetano urge, unindo jovens e os octogenários guardiões da liberdade para salvar o Brasil.
18 de setembro de 2015
A sombra do mau juiz é pior que os frutos da árvore envenenada
A sombra perversa deixada pelo mau juiz envenena a confiança pública, corrói processos e distorce a justiça na sua nascente. Seu mal é sistêmico, prolongado e mais destrutivo que qualquer crime isolado.


O julgamento da trama golpista chegou ao seu desfecho na noite desta quinta-feira, 11 de setembro, com o Supremo Tribunal Federal impondo duras penas aos principais envolvidos:
Jair Bolsonaro foi condenado a 27 anos e 3 meses de prisão;
12 de setembro de 2015
Fux vota em português, mas com legendas em inglês, para agradar Trump
Entre citações a mortos ilustres e desprezo a dezenas de fatos contundentes, Luiz Fux ofereceu voto que absolve réus e agrada Trump, num espetáculo de gigantesca incoerência jurídica histórica.


No dia de ontem, quando o relator Alexandre de Moraes encerrou seu voto pedindo a condenação dos oito réus da trama golpista, o ministro Luiz Fux antecipou: “amanhã, quando eu for proferir o meu voto, não considerarei apartes”. Flávio Dino, com ironia elegante, respondeu: “Vossa Excelência poderá falar à vontade porque não irei pedir qualquer aparte”. Hoje, ao revelar seu voto, ficou claro o motivo da blindagem: medo de ouvir.
O aspecto mais alarmante no voto exaustivo de quase 13 horas do ministro foi sua desconcertante guinada rumo à incoerência. Até março, ele se apresentava como defensor de uma justiça punitiva, valorizando a imposição rigorosa de sanções e a responsabilização célere dos acusados. Agora, revela um contraste perturbador em sua postura.
Sem pudor, tornou-se garantista, preocupado em sublinhar nulidades processuais e restrições à jurisdição do Supremo.
Esse contraste não é mero detalhe. O mesmo ministro que considerou a denúncia “brilhantemente sintetizada” por Alexandre de Moraes, quando da aceitação do processo, resolveu, no dia de hoje, demoli-la. A incongruência é gritante, sobretudo porque acompanhou Moraes em dezenas de condenações dos atos de 8 de janeiro e agora se coloca como patrono das defesas. E capricha na pose.
Resumo da ópera: o ministro absolveu Jair Bolsonaro, Almir Garnier, Paulo Sérgio Nogueira, Augusto Heleno, Anderson Torres e Alexandre Ramagem de todos os crimes, incluindo organização criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado. Divergindo de Moraes e Dino, que condenaram todos, Fux condenou apenas Mauro Cid e Walter Braga Netto por abolição violenta do Estado Democrático de Direito, absolvendo-os dos demais delitos.
A quase canonização dos réus
Em seu longo voto, Fux adotou a estratégia de desmerecer cada prova, uma a uma. Nenhum áudio, nenhum vídeo, nenhum depoimento — todos foram destituídos de força probatória. Restou-lhe apenas aceitar, em parte, a delação do tenente-coronel Mauro Cid, aliás o sonho de consumo de 10 entre 10 advogados dos réus em julgamento.
O resultado foi um quadro surreal: quase canonizou os réus, transformando-os em vítimas de um Estado que, segundo ele, teria ultrapassado os limites do direito. Na sua lógica garantista, Luiz Fux estava em um dia no qual perdoaria Idi Amin Dada e até Adolf Eichmann. (Sim, réus que não tinham metade das provas de culpabilidade que hoje pesam sobre os acusados julgados pelo ministro Fux.)
Esse gesto não foi apenas técnico. Foi político. Ao recusar a robustez das provas, Fux escolheu o caminho de oferecer consolo jurídico a cerca de 47% da população brasileira que ainda reluta em admitir o protagonismo de Jair Bolsonaro na tentativa de subversão da ordem democrática.
Em sua argumentação, estilo dízima periódica, o ministro dificilmente acharia possível o crime de tentativa de golpe.
Erudição de almanaque
O ministro recheou seu voto de citações a juristas do passado. Lidas em tom solene, pareciam descobertas inéditas, quando na realidade eram lugares-comuns da formação jurídica brasileira.
O efeito foi duplo: por um lado, dar verniz acadêmico a um voto frágil; por outro, resvalar em conceitos ao alcance do senso comum, ecoando paixões políticas e agendas particulares. Erudição de almanaque, que ilumina pouco e confunde muito.
Em certos momentos da tarde pensei que o ministro Fux estava apresentando seu voto para os calouros do curso de Direito de Pindamonhangaba ou de Xique-Xique. Nada contra essas acolhedoras cidades.
Ali, falando por todos os orifícios, sentia-se como o primogênito da deusa grega da Justiça, Têmis, representada com venda, balança e espada e que, por sinal, está entronizada à frente do próprio STF. Cabe perguntar: dos cinco juízes, coube apenas a Luiz Fux ser o único a apresentar a justiça em todo o seu esplendor? Seus colegas comeram mosca ao longo dos meses? Isso me fez lembrar novamente do médico Simão Bacamarte, da vila de Itaguaí, protagonista da célebre novela de Machado de Assis: toda a cidade é louca; só o médico é são.
Rivalidade velada com Alexandre de Moraes
A rivalidade entre Fux e Moraes emergiu cristalina. Em certo trecho, Fux declarou: “Eu e o ministro Alexandre somos amigos, mas temos dissensos, nunca discórdia”. O descompasso da frase revela o contrário: discorda sempre, ainda que encubra sob verniz cordial.
E não resistiu a uma alfinetada no ministro Flávio Dino, logo no início: “O senso de humor do ministro Dino é o que o torna atraente”. Um comentário que mistura veneno e falsa cortesia. O voto inteiro foi assim: cordialidade de superfície, veneno escorrendo a céu aberto.
O tom monocórdio e as frases intermináveis exibiram uma vaidade latente. Fux se colocou como astro maior, orbitando soberano e majestoso acima dos colegas.
Era visível o desejo de ofuscar o relatório robusto de Alexandre de Moraes. Mas bastaria submeter seu voto a um seminário em qualquer curso de Direito para expor suas fragilidades: fora as citações pomposas, o conteúdo se esfarela.
A incoerência em forma de voto
Vale lembrar: em março, Fux aceitou a denúncia da Procuradoria-Geral da República contra Bolsonaro e seus aliados. À época, elogiou a “síntese brilhante” de Moraes. Agora, menos de seis meses depois, tenta invalidar todo o processo. Essa virada não é mero detalhe: ela mostra um ministro disposto a redesenhar sua biografia conforme a direção dos ventos políticos.
E não é a primeira contradição. Nos julgamentos anteriores, Fux acompanhou as condenações de dezenas de réus pela barbárie de 8 de janeiro, sem questionar a competência do STF.
Agora, subitamente, afirma que o Supremo nunca deveria ter julgado os casos. Um silêncio eloquente quando lhe convinha, um grito quando interessava.
Ao dizer que “o Mensalão foi abolição do Estado Democrático de Direito”, Fux explicitou seu viés. Não se tratou de argumento técnico, mas de recado político contra a esquerda. A lembrança reaviva sua frase de anos atrás, quando declarou que, diante de questões político-partidárias, “mataria no peito”.
O vínculo com a Lava Jato também emerge. Deltan Dallagnol, procurador da República que coordenou a operação, foi o autor do famoso “In Fux We Trust”, mensagem enviada ao então juiz Sérgio Moro, tentando blindar estratégias da força-tarefa.
Deltan, que depois se elegeu deputado federal, foi cassado pela Câmara em 2023 por irregularidades em sua candidatura e por uso político da Lava Jato. A frase, que parecia piada interna, virou hoje espelho de um voto que destila parcialidade.
Isolamento estratégico e cálculo de futuro
O isolamento de Fux não foi ingenuidade. Há quem veja nele uma estratégia para manter influência em um futuro rearranjo político, mesmo com sua aposentadoria próxima.
Ao se alinhar às defesas, posiciona-se como aliado de setores que poderão voltar ao poder e decidir indicações para o Supremo. Calcula, mais do que julga.
Nos bastidores, o clima foi descrito como sufocante. Um ministro do STF, em condição de anonimato, classificou o voto de Fux como “um dos mais malucos da história do STF”. Outro relato: “o ambiente ficou tão tenso que se poderia cortar o ar com uma faca”.
Colegas manifestaram solidariedade quase unânime a Alexandre de Moraes. A exceção foi Cristiano Zanin, presidente da Primeira Turma, que manteve a neutralidade. O restante sequer olhou nos olhos de Fux.
A palavra mais repetida entre eles: deslealdade.
O humor ácido, mas falso
Um aluno meu me mandou a seguinte mensagem: “Professor, Fux vai gastar todo o verbo, esgotar todo o dicionário e cansar a todos com aquela lengalenga, mas não tarda e logo acaba seu momento de glória. O que o Fux faz é tão somente querer ofuscar o brilho de Moraes. Numa palavra: ego inflado. O Zepelim Fux. E vai morrer na praia, será voto vencido. Amanhã, a ministra Cármen Lúcia, com sua proverbial sabedoria mineira, põe ordem na Casa e ensaboa essa peruca do Fux.”
Do lado de fora, o ex-ministro Marco Aurélio Mello saiu em defesa de Fux. Eufórico, disse: “O voto dele ficará nos anais do Tribunal. O voto dele, a meu ver, escancarou o quadro”. Se Marco Aurélio via no voto uma obra-prima, a lógica se inverte: os insensatos sempre se reconhecem.
O fecho: recado a Trump
O voto de Luiz Fux pareceu menos uma manifestação de justiça e mais um documento político internacional. Pela forma enviesada, pelo tom complacente e pela obsessão em reduzir a responsabilidade de Jair Bolsonaro, soou como um texto pronto para ser lido em Palm Beach. Mais ainda: pareceu escrito para agradar ao presidente Donald Trump, como quem diz que o Brasil só se livrará das tarifas de 50% impostas às exportações brasileiras aos EUA se interromper imediatamente o julgamento ou decretar a inocência do ex-presidente.
E assim termina: não como o voto de um juiz supremo, mas como a peça de um advogado de defesa com endereço estrangeiro.
Bombástico, irônico, melancólico — um voto para a história, mas pela porta dos fundos, com direito apenas a uma pálida nota de rodapé. Acho até muito.
11 de setembro de 2015
Exorcismo no STF com democracia exigindo punição máxima
Moraes e Dino abrem julgamento no STF com provas esmagadoras contra golpistas, selando destino de Bolsonaro e aliados em defesa da democracia ferida.


Nesta terça, 9, assistimos a primeira turma do Supremo Tribunal Federal se transformar em arena onde a democracia, ferida, mas viva, finalmente contra-ataca. No terceiro dia do julgamento do núcleo central da trama golpista – aquela rede de ambições que visava perpetuar o poder à força, ignorando urnas e Constituição –, Alexandre de Moraes e Flávio Dino depositaram seus votos como marteladas precisas em dois pregos enferrujados.
Moraes construiu um edifício de provas que esmaga qualquer dúvida sobre a culpabilidade dos oito réus, aceitando na íntegra a denúncia da Procuradoria-Geral da República. Dino, por sua vez, seguiu o caminho da condenação, mas com uma escala de punições que, embora lógica, soa como um sutil abrandamento para alguns – ironia das ironias, em um caso em que a traição à nação não admite meios-termos. O placar inicia com 2 a 0 pela condenação, um sinal de que a impunidade, enfim, pode estarem um beco sem saída.
Moraes não poupou tinta nem rigor em seu voto, dedicando horas a dissecar as entranhas da conspiração que se estendeu de julho de 2021 ao caos de 8 de janeiro de 2023. Para cada réu, ele pinçou um resumo demolidor da culpa, ancoradas em evidências como mensagens interceptadas, delações validadas e documentos que expõem a crueza do plano.
Começando por Jair Bolsonaro, o ex-presidente emerge como e da organização criminosa, com Moraes destacando sua edição pessoal da minuta do golpe – um decreto que previa prisões arbitrárias de ministros do STF e do presidente do Senado, recebido e “enxugado” por ele em 6 de dezembro de 2022, conforme delação de Mauro Cid. Mas o golpe de misericórdia vem na aprovação tácita da Operação Punhal Verde-Amarelo, um esquema assassino para eliminar Lula, Alckmin e o próprio Moraes, com detalhes macabros como envenenamento e uso de armamento pesado, financiado por agronegócio via aliados e impresso no Palácio do Planalto. Moraes ironizou a defesa: “Não é crível que isso seja mero ‘pensamento digitalizado’ – era um roteiro de terror estatal.”
Contra Walter Braga Netto, o general que se via como pivô da ruptura, Moraes apontou sua coordenação central nas reuniões palacianas de 7 de dezembro de 2022, onde se debateu estados de sítio e defesa para barrar a posse de Lula, com atas e testemunhos revelando sua insistência em quebrar a “normalidade constitucional”. Pior ainda, sua ligação direta com a famigerada operação Punhal Verde-Amarelo, repassando fundos a executores como o major Rafael de Oliveira para cobrir despesas de uma operação que previa “efeitos colaterais” e chances de sucesso calculadas friamente, e que se fosse bem-sucedida transformaria o Exército em ferramenta de assassinato seletivo.
Mauro Cid, o delator que virou peça-chave, não escapou da lâmina afiada: Moraes validou sua delação premiada destacando sua entrega da minuta golpista a Bolsonaro e sua participação em transações financeiras que bancaram acampamentos bolsonaristas, com áudios e mensagens provando seu papel central em uma máquina de desinformação que inflamava multidões contra as urnas.
Almir Garnier, ex-comandante da Marinha, foi exposto por testemunhos que o colocam como o único chefe militar disposto a mobilizar tropas para o golpe, com e-mails e reuniões confirmando sua oferta de forças navais para impor a “intervenção” – uma traição que Moraes qualificou como “prontidão para o abismo”.
Anderson Torres, o ex-ministro da Justiça que transformou negligência em cumplicidade, viu Moraes brandir a minuta impressa do golpe encontrada em sua residência, um artefato que delineava a abolição violenta do Estado Democrático de Direito, com anotações que ligam Torres diretamente ao planejamento. A outra acusação letal: sua omissão intencional na segurança de Brasília em 8 de janeiro, ignorando alertas de inteligência sobre invasões –que Moraes descreveu como “facilitação deliberada do caos”.
Augusto Heleno, o general das sombras, um tanto trapalhão, mas sempre tratado com respeito, foi acusado por suas “anotações golpistas” apreendidas pela PF, um diário de intentos que não era “querido diário”, mas um manual para deslegitimar eleições, com notas sobre ataques ao Judiciário e alianças com milícias digitais.
Paulo Sérgio Nogueira, ex-ministro da Defesa, enfrentou o dedo em riste por atrasar o relatório sobre urnas eletrônicas sob ordens de Bolsonaro, mantendo viva a “chama da fraude” para justificar a não-posse de Lula – uma manipulação comprovada por memorandos internos. Sua segunda linha: a busca de alinhamento com comandantes para preparar o golpe de estado.
Por fim, Alexandre Ramagem, o ex-chefe da Abin que virou deputado, foi implicado pelo uso ilegal da agência para vigiar opositores e espalhar mentiras sobre fraudes eleitorais, com mensagens a Bolsonaro atacando o sistema de votação – Moraes o comparou a um “delinquente estatal”. A outra prova: financiamento de caravanas golpistas via extratos bancários, integrando-o à cadeia de comando que orquestrou os atos de 8 de janeiro.
Essas dissecações, ancoradas em perícias, delações e documentos, formam a essência do voto de Moraes, que concluiu pela condenação integral dos oito por crimes como golpe de Estado, abolição violenta do Estado Democrático e organização criminosa armada. “Não há dúvida: foi uma tentativa consumada de ruptura”, sentenciou, favorável a penas que somem décadas, sem atenuantes para quem tramou contra o povo.
Flávio Dino, o segundo a votar, trouxe uma avaliação que, embora alinhada à condenação, merece escrutínio por sua gradação de penas – uma abordagem que dilui a fúria coletiva contra traidores, sugerindo que nem todos os venenos merecem o mesmo antídoto. Ele posicionou Bolsonaro e Braga Netto no topo da pirâmide, como mentores supremos, merecedores das sanções mais severas por sua “posição dominante” na organização, com ameaças diretas a ministros e coordenação de atos executórios como a Punhal Verde-Amarelo. No estrato intermediário, Cid, Garnier e Torres, com penas um tanto menores, por seu “alto índice de participação” como operadores – Cid por delação parcial, Garnier por oferta de tropas, Torres por facilitação logística.
Para os três de pena mais leve – Heleno, Paulo Sérgio e Ramagem –, Dino argumentou com uma linha que prioriza papéis periféricos: Heleno por fornecer mera “assessoria ideológica” sem comando operacional, limitando-se a notas que, embora tóxicas, não moveram exércitos; Paulo Sérgio por “preparativos logísticos” como o relatório fraudulento, mas com tentativas de dissuadir Bolsonaro, sugerindo hesitação; Ramagem por focar em “inteligência paralela” que saiu do governo em março de 2022, antes do pico da trama, evitando crimes diretos como danos patrimoniais. É uma racionalidade jurídica, mas que ironiza a essência: conspirar, mesmo “consultivamente”, é veneno puro – e punição máxima, a meu juízo, seria o único remédio proporcional.
Dino não parou aí: disparou alertas ao Congresso sobre o projeto de anistia em tramitação na Câmara, declarando que crimes contra a democracia são “insuscetíveis a graça ou indulto”, imprescritíveis pela Constituição, e que o STF os rejeitaria como atentado inafiançável. “Não cabe perdoar o imperdoável”, advertiu, ecoando precedentes da Corte e blindando o julgamento de interferências externas, inclusive ameaças estrangeiras.
Anseio que a continuação da apresentação dos votos dos ministros deixe uma mensagem clara na história do Brasil —não serão toleradas absolvições baratas para quem planejou seu funeral.
Este dia no STF não foi mero procedimento; foi um exorcismo nacional, onde provas irrefutáveis desmontam narrativas de inocência. Que os próximos votos sigam o tom – punição sem piedade, para que a democracia respire aliviada.
10 de setembro de 2015
STF encara o maior julgamento do século XXI no Brasil, com o golpe no banco dos réus
Processo contra Bolsonaro e generais leva STF ao maior julgamento do século, com provas que revelam conspiração que levou o país ao abismo


A arte de julgar, alicerce da ordem social, equilibra justiça e equidade em tempos de incerteza. Visualize uma arena onde a balança da justiça oscila, guiada por princípios perenes, não por caprichos. Enquanto o Brasil acompanha um julgamento crucial no Supremo Tribunal Federal (STF), reflitamos sobre essa prática nobre, enraizada nas origens da civilização.
Julgar transcende o ofício: é a prática de sabedoria, ética e coragem que molda o destino de nações.
Na Grécia Antiga, berço da democracia, juízes atuavam coletivamente. Até 500 cidadãos podiam decidir casos em Atenas, como descreve Aristóteles em Constituição dos Atenienses. Sólon, legislador do século VI a.C., reformou leis para promover igualdade, abolindo dívidas escravizantes e criando tribunais acessíveis.
Em Roma, o direito amadureceu com sofisticação. Juristas como Ulpiano (c. 170–228 d.C.) e Papiniano (c. 142–212 d.C.) orientavam os pretores, magistrados encarregados de aplicar as leis. Ulpiano, morto por defender princípios contra abusos imperiais, tornou-se símbolo de independência judicial. Os romanos viam o juiz como guardião do ius civile, adaptando normas à realidade com equidade — herança que influenciaria séculos depois o monumental Código de Justiniano.
É aqui que minhas memórias pessoais se entrelaçam com a história. Essas lições do direito da Antiguidade as assisti com o professor Condorcet, na Faculdade de Direito Cândido Mendes, ali na Praça XV, em sua velha edificação do período imperial, conhecida por “Forte Apache” devido à arquitetura imponente. O professor Condorcet era especialista em Direito Romano. O ano era 1979, eu contava apenas 20 anos de idade. Hoje, infelizmente, grande parte das faculdades de Direito não têm mais a disciplina de Direito Romano em sua grade. Uma lástima, porque essa raiz civilizatória é essencial para compreender o presente.
Enquanto no direito grego o juiz mediava a dikē (justiça) pela retórica, em Roma o iudex aplicava a lei com rigor, amparado nos éditos anuais dos pretores. Em ambos os casos, julgamentos justos exigiam imparcialidade, busca da verdade, proporcionalidade e humanidade, equilibrando rigor e misericórdia.
Máximas latinas cristalizam esses ideais. Fiat iustitia ruat caelum — “Faça-se justiça, ainda que desabem os céus” —, atribuída a Piso, coloca a lei acima de circunstâncias. Já Summum ius, summa iniuria — “A lei suprema pode ser a suprema injustiça” —, de Cícero, alerta contra a rigidez sem contexto. E Ulpiano definiu: Iustitia est constans et perpetua voluntas ius suum cuique tribuendi — “Justiça é a vontade constante de atribuir a cada um o seu direito”.
Esses princípios conectam a Antiguidade ao direito moderno, distinguindo direito natural e positivo. O natural, enraizado em valores universais da razão ou da divindade, transcende leis humanas, como Cícero argumenta em De Legibus. O positivo, criado por autoridades humanas, é mutável e sujeito a revisões históricas. O mito de Antígona, de Sófocles (441 a.C.), ilustra esse dilema: desafiando Creonte, que proibira o sepultamento de seu irmão Polinices, Antígona invoca leis divinas como superiores às ordens do Estado. A tragédia questiona os limites do poder político diante de direitos inalienáveis.
Essa tensão entre natural e positivo ressoa na arte de julgar de hoje, em que provas são o alicerce das decisões. Testemunhos verbais, relatos oculares, registros documentais, perícias técnicas (como exames de DNA) e evidências materiais compõem o conjunto probatório. Colhidos em inquéritos e audiências, devem ser avaliados pela relevância e credibilidade — sempre lembrando que a memória de testemunhas oculares é falível, como comprovam inúmeros estudos psicológicos.
No Brasil, o Código Penal de 1940 estrutura crimes e penas, orientando sanções proporcionais. O princípio do “livre convencimento motivado” garante ao juiz liberdade de análise, mas exige fundamentação clara, em nome da transparência e da confiança pública.
O jurista Rudolf von Ihering, em A Luta pelo Direito (1872), deixou duas lições essenciais. Primeiro: o direito nasce de conflitos sociais e evolui pela luta. Segundo: ele serve a fins coletivos, reconciliando interesses para o bem comum, sempre priorizando a ética. Esse arcabouço é vital para lidar com crimes contra o Estado, como golpes de Estado — a derrubada violenta de governos legítimos, conceito explorado por Curzio Malaparte em Técnica do Golpe de Estado (1931).
No Brasil, a Lei 14.197/2021 redefiniu as bases da proteção ao Estado Democrático de Direito. Criminalizou, de forma inequívoca, qualquer tentativa de subversão da ordem constitucional, mesmo quando desprovida de violência ostensiva. A nova tipificação abrange atentados contra a soberania, contra as instituições e contra a própria normalidade democrática. Foi um amigo — e um dos mais brilhantes advogados de sua geração, Dr. Luigi Roberto Berzoini — quem me chamou a atenção para um detalhe pitoresco. Alguém aqui sabe quem assinou essa lei? Basta recorrer ao Diário Oficial da União:
“Brasília, 1º de setembro de 2021; 200º da Independência e 133º da República.
JAIR MESSIAS BOLSONARO
Anderson Gustavo Torres
Walter Souza Braga Netto
Damares Regina Alves
Augusto Heleno Ribeiro Pereira”
Eis a ironia: a lei que agora serve de espada contra os conspiradores foi sancionada por eles próprios, como se tivessem redigido de antemão a ata de sua condenação. Só uma figura escapou da cena do crime — a senadora Damares Regina Alves. A história, maliciosa como sempre, adora esse tipo de piada de mau gosto.
É nesse contexto que se insere o julgamento histórico do STF, iniciado em 2 de setembro de 2025. Oito réus, entre eles o ex-presidente Jair Bolsonaro, respondem por tentativa de golpe, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, organização criminosa armada e depredação de patrimônio público.
Ao seu lado estão nomes de peso da antiga cúpula militar e política: os generais Augusto Heleno Ribeiro Pereira, Walter Souza Braga Netto e Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira; o almirante Almir Garnier Santos; o tenente-coronel Mauro Cid; o ex-ministro Anderson Torres; e o ex-diretor da Abin Alexandre Ramagem. A acusação relaciona a trama ao período pós-eleições de 2022, quando um decreto de Garantia da Lei e da Ordem teria sido preparado para sustentar Bolsonaro no poder, em conexão direta com os ataques de 8 de janeiro de 2023.
Hoje, 9 de setembro de 2025, após uma semana de sustentações orais, o relator Alexandre de Moraes abre a votação. Os dois votos mais aguardados são justamente os dele e do ministro Luiz Fux. De Moraes espera-se firmeza, como investigador do caso e também alvo da trama, cuidando sempre para que tudo ocorra dentro do devido processo legal. Merece aplausos da sociedade brasileira por sua incansável busca por justiça.
Já Luiz Fux, ministro carioca, é figura controversa — para dizer o mínimo. Nas últimas semanas, ele e outros dois ministros da Suprema Corte, André Mendonça e Cássio Nunes, foram os únicos poupados pela ira intervencionista e ilegal do presidente Donald Trump. Os três não receberam sanções do governo norte-americano, o que levantou suspeitas sobre sua plena independência. A estranheza aumentou quando se soube de uma carta insólita e abusiva enviada por Trump ao governo brasileiro: nela, condicionava a derrubada das tarifas de 50% sobre produtos exportados pelo Brasil aos Estados Unidos à absolvição do ex-presidente Bolsonaro.
Na sequência, votarão também os ministros Flávio Dino, Cármen Lúcia e Cristiano Zanin, todos integrantes da Primeira Turma. O julgamento deve se encerrar em 12 de setembro, quando serão fixadas as penas individualizadas, considerando agravantes como liderança e participação em atos preparatórios.
Esse processo não é apenas jurídico: é também um teste histórico à democracia brasileira. Em um mundo onde a justiça tantas vezes oscila, julgar com equidade fortalece sociedades e projeta confiança no futuro. Poucos processos julgados neste século reúnem uma quantidade tão extraordinária de provas: são dezenas de horas do réu delator, o tenente-coronel Mauro Cid, centenas de documentos comprometedores e inquestionáveis, centenas de horas gravadas em áudios e vídeos, inclusive daquelas reuniões preparatórias oficiais no Palácio do Planalto onde se tramou boa parte do golpe de Estado. Mas não para por aí. Quem tiver paciência passará algumas semanas ouvindo centenas de horas de depoimentos prestados não apenas pelos réus, mas também pelas testemunhas por eles arroladas e pelas convocadas pela Procuradoria-Geral da República. Somam-se ainda exaustivas diligências e inquéritos minuciosamente investigados e concluídos pela Polícia Federal.
A quantidade de provas contra os meliantes — grande parte delas produzida por eles mesmos para autopromoção em suas redes sociais — é de causar espanto.
Que a arte de julgar, forjada desde a Antiguidade, seja agora a muralha que protege a democracia brasileira diante de seus mais ousados inimigos internos.
10 de setembro de 2015
Meu cartaz diria assim: "Sim, eu sou a humanidade!"
A islamofobia não é o iceberg inteiro, mas apenas uma de suas pontas. Não é o ódio aos muçulmanos que está engolfando a Europa. É o horror, o desprezo e a repulsa a todos os que não são naturais do velho continente


Os franceses tiveram no último dia 7 de janeiro o seu 11 de setembro.
Mas são dois episódios muito distintos:
O 11/9/2001 atingiu duas torres-símbolos do sistema financeiro norte-americano, aniquilando 3.278 vidas humanas.
O 7/1/2015 atingiu a redação de um jornal parisiense, o Charlie Hebdo, conhecido por sua irreverência e paixão pela polêmica fácil e quase sempre de mau gosto.
O 11/9 foi em si o auge da espetacularização do terrorismo seguido por comoção mundial que respaldou e buscou legitimar ações armadas contra o terror no Iraque, Afeganistão, Líbia, Síria.
O 7/1 teve em seu auge imediata comoção mundial seguida por breve caçada dos assassinos, sua morte menos de 48 horas do atentado e uma breve expansão do atentado atingindo supermercado judaico e elevando o número de mortes a 17.
O 11/9 matou pessoas aleatoriamente, tanto poderiam ser pessoas comuns fazendo compras em um dos metas shoppings centers de New York quanto milhares de pessoas circulando em sua mais movimentada estação de metrô.
O 7/1 matou pessoas escolhidas a dedo - todas relacionadas com a atividade jornalística, todas envolvidas com a publicação de charges e desenhos ofensivos ao fundador da religião islâmica, o profeta Muhammad, sendo muitas dessas charges claramente obscenas e para além de qualquer respeito à ideia que devemos ter concernentes à crença religiosa.
O 11/9 motivou imediata resposta midiática do então presidente George Bush deixando claro que o governo que representava distinguia claramente o ataque terrorista feito por extremistas muçulmanos de todo o conjunto de milhões de muçulmanos, ou seja, o inimigo não era o Islã, mas sim uma pequena porção de seguidores radicais, mas na sequência os fatos soterraram as alegadas boas intenções: teve início a guerra no Iraque em busca de armas químicas em poder do regime de Saddam Hussein com saldo de milhares de vítimas fatais e muçulmanos passaram a ser discriminados com muito maior rigor, não apenas nos Estados Unidos, mas também por toda a Europa.
O 7/1 também motivou enfática declaração do presidente francês François Hollande no sentido de separar os dois autores do atentado ao Charlie Hebdo mortos da inteira comunidade islâmica do país.
No campo das ideias reina o bom senso: que país ou que governo seria capaz de incriminar como autores dos dois atentados - 11/9 e 7/1 - nada menos que 1 bilhão e 900 milhões de adeptos da religião do Islã?
Resta saber o que irá prevalecer no campo das ações: aumentará a já imensa islamofobia que assola a Europa e que tem na França um de seus maiores bastiões?
A islamofobia não é o iceberg inteiro, mas apenas uma de suas pontas. Não é o ódio aos muçulmanos que está engolfando a Europa.
É o horror, o desprezo e a repulsa a todos os que não são naturais do velho continente, milhões de imigrantes e refugiados, desempregados e subempregados que vieram à Europa fugindo de perseguições políticas, étnicas, religiosas e econômicas, largos contingentes populacionais que migraram de países árabes, asiáticos, africanos e latino-americanos.
É a velha xenofobia, doença antiga que enferma colonizadores e nações com aspirações imperialistas, e que lhes garantem a crença na falácia que são povos superiores, membros de uma espécie de gênero humano Classe A.
O que o mundo vive neste momento é mais um vigoroso testemunho que não existem integrantes de uma 'humanidade especial' - estamos todos nós, e isso significa a inteira população planetária que abarca mais que 7 bilhões de seres humanos, em uma mesma travessia - a travessia de um mundo debilitado e em estágio terminal, carcomido pela gangrena que reúne a uma só vez os males letais do racismo, nacionalismo e materialismo para o mundo possível com que as pessoas de boa vontade ao longo dos milênios sempre sonharam e esperaram viver, um outro mundo onde ideias como paz mundial e fraternidade humana ultrapassam os limites flexíveis da retórica vã e vazia e fincam raízes profundas no imaginário de uma só e mesma espécie - a espécie humana.
Sim, digamos em alto e bom som, com aquele rosto crispado de sincera indignação:
"Toda forma de terror é abominável, execrável, inaceitável sob qualquer ponto de vista e, por isso mesmo, precisa ser combatido! Todos os povos têm o direito de viver em um ambiente onde se respeitem as liberdades individuais e se possa buscar a felicidade com o sentimento real de segurança!"
Sim, digamos também em alto e bom som, e com o mesmo semblante ainda transtornado pelas cores da mais legítima indignação:
"Nenhuma liberdade é absoluta! Não se pode amparar na marquise das liberdades humanas essa forma bastarda que entende o desrespeito abusivamente repetido as crenças religiosas de outrem como sendo o direito à liberdade de expressão! Nenhuma liberdade que se preze pode ousar incitar o racismo, a xenofobia, pois quando assim se manifesta estamos apenas a poucos passos do estágio de barbárie!"
Eu jamais poderia me imaginar portando um cartaz com os dizeres "Eu sou Charlie - Je suis Charlie!".
Porque em minha mais tenra imaginação não consigo me ver desrespeitando não apenas o Islã, como também não me vejo como agressor contumaz do Cristianismo, Judaísmo, Budismo, pessoas de origem africana, ciganos, minorias étnicas, migrantes e refugiados em geral.
E se tivesse que marchar com um cartaz nas mãos, teria que ser algo que refletisse o meu mundo interior, que abarca a imensa diversidade humana, com seus credos, suas cores e etnias, seus pensamentos, suas visões de mundo.
Meu cartaz diria, então, estas palavras: "Sim, eu sou a humanidade!"
Provavelmente estaria em franca minoria na marcha de mais de 1 milhão de pessoas que em sua grande maioria portavam o equivocado "Je suis Charlie!" nas ruas de Paris na tarde deste domingo, 11 de janeiro.
Mas, pensando bem, quem disse que uma ideia errada conduzida nos braços de milhões de pessoas a tornaria menos errada?
12 de janeiro de 2015
Boff, Suplicy e Paim Campeões da Justiça
Em um mundo que se move sob o signo da instabilidade – política, econômica, social e religiosa – é bem pouco comum ver três personalidades brasileiras levantar suas vozes em defesa de pessoas oprimidas


Em um mundo que se move sob o signo da instabilidade – política, econômica, social e religiosa – é bem pouco comum ver três personalidades brasileiras levantar suas vozes em defesa de pessoas oprimidas que, vivendo no Irã, um país tão distante do Brasil e com cultura tão diversa da nossa, pagam alto preço para ter um direito humano básico – o direito à liberdade de religião.
A essas pessoas, um teólogo e dois parlamentares, sinto-me preso da mais profunda admiração. E não encontro melhor designação para eles que esta: Campeões da Justiça. Em solenidade particular, nos recintos de minha consciência interior reputo Leonardo Boff, Eduardo Suplicy e Paulo Paim como sinceros campeões da justiça.
Cada um à sua maneira, usando os instrumentos que dispõem, não hesitaram em chamar a atenção do mundo para o interminável drama que vivem os cerca de 300.000 seguidores da religião bahá´í no Irã, drama iniciado no distante 1844, início dessa epopéia religiosa que sonhou desde seus primeiros dias com a unidade do gênero humano, a cidadania mundial, a igualdade de direitos para homens e mulheres, o apreço à diversidade de raças e etnias, a defesa do princípio de que a divindade, Deus, é um só e que, portanto, todas as religiões têm uma mesma fundamentação teologal, devendo ser objeto do mais sincero respeito e admiração.
Leonardo Boff foi assertivo quando divulgou documento público em que apoia o esforço de diálogo aberto com todas as religiões - e o respeito a cada uma delas - promovido pelo clérigo iraniano Ayatollah Abdol-Hamid Tehrani. Dentre esses esforços louvados por Boff se encontram o refinado trabalho de Tehrani em produzir iluminuras para trabalho de caligrafia, uma das mais belas artes a caracterizar a milenar cultura artística da Pérsia.
O renomado teólogo islâmico, ao destacar em sua preciosa arte textos sagrados em defesa dos seguidores da religião bahá´í, abriu com esse inusitado gesto enorme clareira em meio ao obscurantismo que por longos séculos aprisiona o Islã em sua difícil convivência com outros credos e outras formas de sentir Deus e de pensar o mundo. E Boff chama a atenção para esse acontecimento, dando relevo também à sua própria atuação como teólogo cristão – ele mostra do que é capaz um coração sem fronteiras aliada a uma mente receptiva às emanações do melhor que pode irradiar da consciência humana. É a coerência em toda sua inteireza, unificando pensamento e gesto, crença e conduta de vida. É um genuíno campeão da justiça porque percebe muitos anos antes de seus contemporâneos que a defesa da justiça precisa ser feita independente das características das vítimas, das religiões que abraçam, dos países em que vivem, dos idiomas em que se comunicam.
Dessa aproximação de Boff a Tehraní em defesa do humano que habita em cada um de nós e que busca conexão com o Sagrado, entendo oportuno destacar essas palavras do teólogo franciscano: "Como não recordar, neste contexto, a extraordinária experiência de convivência pacífica e de profundo diálogo que os seguidores de Allah viveram durante 7 séculos na Espanha com Averroes, Avicena e outros grandes poetas com os cristãos, e contemporâneos como o franciscano Raimundo Lullo. Este criou um centro de diálogo e troca entre muçulmanos, judeus e cristãos na convicção de que ninguém deles, embora com compreensões diferentes, estava fora da verdade. Não só respeitavam os caminhos diferentes, mas admiravam o que cada um podia apresentar para um conhecimento maior do Altíssimo. Que isso nos sirva de inspiração para entender o trabalho tão admirável do Aytatollah Tehrani."
Eduardo Suplicy remonta a uma espécie de líderança política quase em extinção. É essencialmente um pacifista, símbolo perfeito do mundo de sua juventude – os 1960, 1964, 1968 – aquela época em que se fazia revolução fundada na promoção de não mais que duas palavras – paz e amor – e contava com a força vibrante extraída da arte de artistas como Bob Dylan, Chico Buarque, Victor Jara. É de uma determinação exemplar. Ninguém pode deixar de associar o nome Suplicy na política brasileira com sua atuação parlamentar prenhe de justiça social e que desemboca no programa que ele gerou, deu forma e se pôs a defender – o renda básica de cidadania.
No mesmo 14 de maio, para assinalar seis anos de confinamento dos Yarán, nome como são conhecidos os sete líderes bahá´ís presos por professar uma religião não permitida pela República Islâmica do Irã, Suplicy se dirigiu à tribuna do plenário do Senado Federal e, qual águia com sua visão aguda, fez belíssimo voo em defesa dos direitos humanos, em defesa da liberdade de religião, em defesa do estado de justiça. E em defesa dos mesmos bahá´ís, há poucas semanas da contundente defesa vocalizada por Leonardo Boff. O senador paulista, mostra assim, seu melhor eu ao ser voz para esses sofridos da Terra. e ao assomar à tribuna do Senado chama a atenção dos governos do mundo, em especial do governo brasileiro e, também, da imprensa internacional para a gravíssima situação em que lutam por sobreviver os bahá'ís no Irã. Ele entende que precisa ser mais uma potente voz a ecoar a luta por justiça que encontra eco em dezenas de parlamentos e governos do mundo, integra as preocupações de inúmeros pensadores, acadêmicos e intelectuais em geral, que ao se pronunciarem em defesa dos Yarán e, ao exigirem a imediata cessação da violação dos direitos humanos dessas pessoas inocentes no Irã, constroem sólidas cidadelas em volta do conceito maior da cidadania mundial – somos.
Desse libelo de Suplicy a favor da dignidade humana convém destacar essas suas palavras: "Na difusão de uma falaciosa dicotomia, os bahá'ís são retratados pelo governo iraniano como "descrentes", esses que os muçulmanos xiitas elegem para travar guerras físicas e psicológicas. Será mais um grito por justiça e em defesa dos direitos humanos de todos os que destes têm sido privados. Entendem os bahá'ís que "o que infelicita a parte infelicita o todo" e que a consciência espiritual da humanidade não pode continuar vítima da opressão do Estado, nem de quaisquer forças sociais que tolham o direito básico de cada ser humano – o direito de crença [em especial de crença religiosa].Trata-se de uma questão de justiça e respeito ao ordenamento jurídico internacional que tanto prezam os postulados de defesa dos direitos humanos."
Paulo Paim é um intransigente defensor das melhores causas sociais. É profundo conhecedor dos que padecem de injustiças. Seu pensamento não conhece fronteiras e onde houver um necessitado a mendigar direitos, a clamar por justiça, encontrará nesse valente senador gaúcho um apoio, um respaldo, uma trincheira na luta contra o racismo, contra a intolerância religiosa, contra a servidão humana. E isso não é de hoje, vem com ele desde sempre: uma solidariedade latente para com os deserdados do mundo.
No dia 22 de maio, voltou a usar a tribuna do Senado para proclamar a urgência de se respeitar os direitos humanos. Primeiro tratou, ainda pela manhã, do sequestro de centenas de meninas na Nigéria pelo grupo radical islâmico Boko Haram. E, ao final da tarde do mesmo dia, fez pronunciamento em que ecoou o pensamento de Heiner Bielefeldt, relator especial da ONU sobre a liberdade de crença, para quem "os ataques contra Baha'is no Irã representam um dos mais claros casos de perseguição religiosa patrocinada pelo estado no mundo." Paim abordou a situação caótica em que busca sobreviver os milhares de bahá´ís iranianos por uma vertente ainda pouco explorada – o bullying de Estado.
Com rara sensibilidade o líder político gaúcho desenvolveu seu pensamento em torno de uma questão que envolve a vida e também a morte de seres humanos inocentes. E considerou o trágico que é, em pleno século XXI, visualizar o impacto danoso e prejudicial que toda forma de perseguição religiosa tem sobre a vida de um indivíduo. Paim tratou de explicitar o significado dessa opressão sistemática sobre a vida de uma criança bahá´í, começando ainda no jardim de infância, época da vida em que se começa perceber o mundo, apreciar sua diversidade de cores, formas, rostos, imagens.
E concluiu seu discurso assim: "Como deve ser difícil a uma criança ou a um pré-adolescente, ser reprimido desde tão jovem e exposto ao bullying de Estado, instrumentalizado de tal forma a lhe dizer que você traz consigo algum crime genético, alguma ameaça ao seu país, que você é estigmatizado porque tem algo de muito errado com você, com suas crenças e sua maneira de ver o mundo. E, pior ainda, você ser exposto a políticas de estado que lhe dizem desde muito cedo que você precisa mudar e se adaptar ao que o estado dizer ser bom, justo, benéfico. E quando essa criança cumpre todo o ciclo de estudos do ensino fundamental, médio, se sente automaticamente rejeitado pelo sistema público de ensino superior, uma rejeição arbitrária e inimaginável. São numerosos os casos de baha'is que foram expulsos de universidades e outros setores do ensino superior. E mais numerosos ainda o número de jovens bahá´ís a que tem sido negado o direito de matrícula em universidade de virtualmente todas as grandes cidades do Irã."
Desde agora sempre que vir os nomes Leonardo Boff, Eduardo Suplicy e Paulo Paim, pensarei em como eles personificam à altura nossos melhores anseios e esperanças por um novo mundo, onde o primado dos direitos humanos seja tão óbvio e presente quanto o é o ato de respirar, pensar e amar.
Eles se juntam a grandes pensadores que ao longo da história levantaram suas vozes em defesa dos direitos humanos dos bahá´ís, lendas como o Mahatma Gandhi, Leon Tolstói, Romain Rolland. A diferença é que, finalmente, temos um trio brasileiro bem sintonizado com os mais nobres interesses da espécie humana.
https://www.brasil247.com/blog/boff-suplicy-e-paim-campeoes-da-justica
27 de maio de 2014
Precisamos criar já o fundo nacional de combate ao racismo
O déficit do Brasil na luta pela igualdade racial e que impede a implementação das políticas de promoção da igualdade racial é gigantesco e tem nome: a falta ou o contingenciamento de recursos orçamentários


O Brasil está vivendo um momento singular: cresce, dia a dia, o número de pessoas que se engajam na defesa de causas sociais que vão desde a defesa do meio ambiente, o uso consciente dos recursos hídricos, até a promoção dos direitos humanos, o que inclui as questões de gênero e um vigoroso redirecionamento na luta contra toda forma de discriminação racial e suas perversas consequências para a autoestima de populações historicamente vulneráveis.
É como se tivéssemos passado tempo demais atento a posturas comportamentais ditadas pelo espírito do politicamente correto. Essa forma de proceder em sociedade tem sido exitosa em ocultar visões deformadas sobre a real natureza humana, concedem um fugaz verniz de civilidade a ocultar pensamentos, gestos, atitudes e ações eivadas de discriminações raciais.
E, assim meio que de repente, vemos irromper na superfície da sociedade selvagens atos de irracionalidade.
Atos públicos – e também privados - colocam em evidência um dos mais cruéis tipos de racismo – aquele enrustido, abafado que é desde as páginas de nossos livros escolares, e que se esconde intenta se perpetuar sob a fina capa da invisibilidade social, como que a proclamar sua não existência e que, no limite, se revela em todo seu cinismo como discriminação racial enraizada no próprio coração da sociedade brasileira.
Passamos do estágio do reconhecimento que o racismo, além de criminoso, existe e vige em diversas instâncias de nossas estruturas sociais.
Prova disso é que não se passa um dia sequer sem que algum veículo de comunicação divulgue ato explícito de racismo – mas a grande mídia somente trata de divulgar o tema quando este é tão chamativo que logo ao se tomar conhecimento se levante o necessário clamor público.
A discriminação racial que não sai na imprensa é a do tipo mais corriqueira – negros proibidos de ingressar em shoppings e edifícios de alto luxo, negros intimidados ao adentrar em certos clubes sociais em que se reúne aquele pequeno contingente da sociedade que ostenta riqueza que causaria vergonha a tradicionais famílias de banqueiros europeus e a chefes dos chamados "petropotentados"
Também integra o cordão de isolamento midiático as inconvenientes estatísticas oficiais dando conta da discriminação racial no mercado de trabalho e o perverso e sempre imenso número de vítimas de homicídios, em particular, vítimas da própria violência policial nos grandes centros urbanos do Brasil.
O que ainda nos desafia é esse não reconhecimento que o racismo precisa ser combatido noite e dia, hora a hora, momento a momento – é que ele permeia as relações sociais, se manifestam de uma hora para outra de forma tão solene quanto o aparecimento de uma sólida catedral gótica.
E são essas espécies de catedrais de preconceitos acumulados no leito dos séculos que alojados em nosso inconsciente coletivo precisam ser urgentemente demolidas, extirpadas de nosso imaginário.
O racismo, qual persistente carga negativa, nos faz recordar que é ainda bastante longa a caminhada que precisamos trilhar para o estabelecimento da justiça no mundo.
EM BUSCA DAS RAÇAS
Mas, teremos algum tipo de atenuante por portarmos atitudes racistas? Somos mesmos de diferentes raças e dentre estas existiriam gradações entre raças superiores e inferiores?
Antes de tudo devemos ter em consideração que a ciência tem buscado exaustivamente definir as raças que compõem nossa espécie.
Após reconhecer que medir o diâmetro de crânios, braços, pés constituía uma trabalho muito complicado para a definição de uma raça, com o progresso da genética os antropólogos observaram que através de algumas gotas de sangue era possível referenciar as coleções de genes, mas chegaram à conclusão que existem quatro grupos sanguíneos e esses quatro grupos se encontram em todo e qualquer grupo racial.
Posteriormente foram definidos outros sistemas: Rhesus, MNSs, Duffy, Diego, GM e ainda o HL-A. Utilizando todos esses sistemas, cientistas concluíram que devido a multiplicidade de informações recolhidas a classificação em grupos homogêneos tornava-se extremamente difícil.
A opção então recaiu para o método estatístico, segundo os genes que são específicos de cada grupo. Chegamos ao ponto: Sendo a cor negra característica da raça negra, buscou-se então os genes "marcadores" responsáveis pela cor da pele. Os resultados foram também decepcionantes: os genes não são específicos a uma ou duas raças e as conclusões apontaram para o fato de que todas as populações têm mais ou menos os mesmos genes.
DISTÂNCIA GENÉTICA
Chegam então os biólogos e imaginam uma medida chamada "distância genética". Esta distância é tanto maior quanto maior for a diferença entre os patrimônios genéticos de duas ou mais populações comparadas.
A conclusão é clara: a humanidade não pode ser classificada em raças pela simples comparação dos patrimônios genéticos, chegando François Jacob, prêmio Nobel de Biologia a afirmar categoricamente:
"O conceito de raça é, para nossa espécie, não operacional." Jacob não fica solitário nessa declaração. O duplamente premiado com o Nobel de Medicina e de Psicologia, Jean Dausset declara que "a ideia de "raça pura" é um contrassenso biológico."
Se considerarmos a afirmação de muitos expoentes da ciência, de que não existem raças, no entanto, temos que conviver com este pernicioso defeito de nossa civilização: o racismo existe!
É patético então encontrar alguém racista, se não existem meios científicos que elabore a distinção de raças?
O geneticista e escritor francês, Albert Jacquard afirma que "na verdade, temos medo do desconhecido, de encontrar alguém que não seja nosso semelhante, este medo, por sua vez, transforma-se em agressividade e ódio e assim nasce o racismo."
Fruto do medo e do ódio aos que achamos ser nossos "dessemelhantes".
E a cada vitória do medo e do ódio corresponde uma derrota para a Humanidade como um todo.
Mas o mundo, queiramos ou não, encontra-se francamente direcionado para o resgate dos direitos humanos e da unidade racial dentro de um contexto amplo enunciado em meados do século passado: a Unidade do Gênero Humano.
SEM PRETEXTO
O preconceito racial é algo que merece uma ampla reflexão sobre suas origens mais remotas, sempre adquiridas ao longo do tempo pelo sistema de valores reinantes em cada época.
Vejamos a história do Brasil: índios e negros são escravizados para produzir riquezas para o dominador. Tanto negros quanto índios eram considerados inferiores, como seres dotados de baixo nível de inteligência, e isso concedia aos seus "senhores" uma motivação moral para mantê-los no regime escravista.
Como Sartre bem definiu "o racismo é um estado de espírito patológico, uma forma de irracionalidade, um tipo de epidemia."
Em 1986, em importante documento da Casa Universal de Justiça, ficou afirmado que "o racismo, um dos males mais funestos e mais persistentes, constitui obstáculo importante no caminho da paz" e que sua prática "constitui uma violação demasiado ultrajante da dignidade do ser humano para poder ser tolerada sob qualquer pretexto."
Ressalto duas questões de uma pesquisa realizada pela antropóloga Lilia Schwarcz, autora de "O Espetáculo das Raças":
(1) Você é preconceituoso? 99% responderam "não" e
(2) Você conhece alguém preconceituoso? 98% responderam "sim".
O que pode levar alguém a ser superior, parece-me razoável, seria a capacidade desse alguém de praticar o bem, levar avante o progresso da civilização e possuir uma conduta digna e louvável, capaz de não apenas tolerar mas antes saber apreciar a imensa diversidade humana e não se sentir superior devido à cor da pele ou aos contornos do mapa de sua engenharia genética.
FUNDO NACIONAL DE COMBATE AO RACISMO
Nesse estágio atual temos o formidável êxito das ações afirmativas que trouxeram inadiável diversidade racial aos bancos de universidades e do ensino superior em todas as partes do Brasil. Mas, ainda é pouco se considerarmos a dívida que temos com o grande contingente de afrodescendentes brasileiros.
Enquanto faço esta reflexão, saúdo com total apoio o engajamento de dezenas de entidades da sociedade civil, incluindo religiões e partidos políticos, para angariar quase 1,5 milhão de assinaturas para levar avante projeto de lei de iniciativa popular a ser apresentado ao Congresso Nacional e que, em sua essência, cria o Fundo Nacional de Combate ao Racismo (FNCR). A Comunidade Bahá´í do Brasil, da qual faço parte, está mergulhada de corpo e alma na coleta das necessárias assinaturas.
Importante destacar que, segundo a Constituição, um projeto de iniciativa popular precisa receber a assinatura de pelo menos 1% dos eleitores brasileiros – cerca de 1,4 milhão de assinaturas – divididos entre cinco estados, com não menos de 0,3% do eleitorado de cada estado. A assinatura de cada eleitor deverá ser acompanhada de nome completo, endereço e número completo do título eleitoral – com zona e seção — e as listas de assinatura devem ser organizadas por município e por estado, de acordo com formulário. Veja aqui.
Uma vez aprovado o projeto de lei, os recursos oriundos do pagamento de penas de multas de crimes raciais, doações orçamentárias específicas, doações de pessoas físicas, de organismos nacionais e internacionais e de outras fontes especificadas serão aplicados num fundo patrimonial que, então, tornará possível o custeio da política de promoção da igualdade racial.
O projeto prevê também que o fundo será administrado por um comitê gestor criado especificamente para administrar os recursos, composto de forma paritária por representantes do governo e da sociedade civil.
A realidade é que precisamos ultrapassar o importante estágio de produção legislativa criminalizando - e penalizando cada vez mais - autores de condutas racistas.
Os recursos governamentais destinados às Políticas de Promoção da Igualdade Racial devem alcançar um patamar à altura dos desafios presentes hoje no Brasil.
Estes desafios incluem a promoção de pesquisas e estudos sobre os males da discriminação racial, produção de material didático para ensino nas escolas e universidades sobre a erradicação do racismo da sociedade brasileira, realização de eventos e campanhas de conscientização sobre os males do racismo e o apreço à rica diversidade humana de que somos todos herdeiros.
O déficit do Brasil na luta pela igualdade racial e que impede a implementação das políticas de promoção da igualdade racial é gigantesco e tem nome: a falta ou o contingenciamento de recursos orçamentários.
É por isso que, - com mais outras 1844 razões - defendemos a criação do FNCR.
https://www.brasil247.com/blog/precisamos-criar-ja-o-fundo-nacional-de-combate-ao-racismo
16 de dezembro de 2014
