Educação e ciência
O dia em que o Louvre compreendeu o Egito
Roubo das joias de Napoleão tornou-se metáfora da História: a França sente, por instantes, a mesma dor que o Egito - e tantos outros - ainda carregam há séculos


Na manhã fria de domingo, 19 de outubro de 2025, Paris acordou com sirenes em vez de violinos. Às 9h30, quatro homens mascarados estacionaram um caminhão discreto ao lado da ala Denon, no coração do Museu do Louvre. Vestiam coletes amarelos, como se fossem técnicos de manutenção. Em minutos, ergueram uma escada hidráulica até a janela da Galeria Apolo, quebraram o vidro, abriram duas vitrines e levaram oito joias da coroa francesa. Tudo cronometrado: sete minutos.
Quando a polícia chegou, restava apenas o vazio — e um retrato trincado de si mesma, onde antes reluziam diamantes, esmeraldas e a memória imperial de Napoleão.
O roubo das joias foi cirúrgico. Calculado com a frieza de quem estuda a rotina do museu mais visitado do planeta. Os ladrões sabiam que, naquele horário, o Louvre ainda estava abrindo as portas. Sabiam também que 30% das câmeras das galerias — conforme um relatório do Tribunal de Contas francês — não funcionavam. Fugiram por ruas já cheias de turistas e desapareceram em motos, como se Paris tivesse se tornado cúmplice do próprio roubo.
Horas depois, o ministro da Justiça declarou: “É como se todos os franceses tivessem sido roubados.”
Sim — mas não só os franceses.
O museu que nasceu do saque
O Louvre é o orgulho francês, mas também seu retrato mais incômodo.
Erguido como fortaleza em 1190 por Filipe Augusto para proteger Paris das invasões normandas, transformado em palácio real durante o Renascimento e, após a Revolução Francesa, convertido em museu nacional em 10 de agosto de 1793, tornou-se o guardião daquilo que a França chama de “patrimônio universal”. Mas a universalidade, nesse caso, nasceu da conquista.
Foi Napoleão Bonaparte quem primeiro entendeu que conquistar territórios era também conquistar suas almas artísticas. Entre 1796 e 1815, ao invadir a Itália, o Egito e a Bélgica, impunha cláusulas humilhantes: as cidades derrotadas deviam enviar seus tesouros para Paris. Assim nasceu o primeiro Louvre imperial — abarrotado de estátuas gregas, telas renascentistas, múmias egípcias e pergaminhos confiscados sob a bandeira da civilização.
O Código de Hamurabi chegou a Paris como “presente diplomático” — na verdade, um espólio arqueológico.
A Vênus de Milo foi retirada de seu solo original para se tornar símbolo da França.
A Vitória de Samotrácia, arrancada de uma ilha grega, foi içada na escadaria do museu como se o triunfo alheio fosse francês.
O Egito, então, foi quase um saque institucionalizado. As expedições napoleônicas abriram tumbas, arrancaram sarcófagos e transportaram centenas de peças por navio. A “missão científica” que acompanhava o exército produziu o monumental Descrição do Egito — e o vazio deixado nas margens do Nilo.
Hoje, a ala egípcia do Louvre exibe joias de uma civilização eterna: o Escriba Sentado, de olhar vivo após quatro milênios; a colossal estátua de Ramsés II; o Sarcófago de Emehetep coberto de hieróglifos intactos; e o Busto de Akhenaton, símbolo da primeira revolução espiritual da humanidade.
Muitos visitantes acreditam que o sarcófago de Tutancâmon está ali, mas ele jamais deixou o Egito — permanece sob guarda do Museu do Cairo, hoje transferido para o Grand Egyptian Museum, em Gizé. A lenda, contudo, ajuda a compreender a força do fascínio que o Louvre exerce sobre o imaginário do mundo.
O Louvre que conheci
Estive cinco vezes no Louvre ao longo dos meus 66 anos de vida. Em todas elas — da primeira visita aos 24 anos até a mais recente — experimentei o mesmo arrebatamento que se sente ao cruzar um portal invisível entre o humano e o infinito.
Naquela primeira vez, minha curiosidade juvenil foi sequestrada por um sentimento que só os grandes encontros provocam: a vertigem diante do gênio humano, a constatação de que a engenhosidade é o idioma que sobrevive às ruínas.
Diante da Mona Lisa, da Vitória de Samotrácia e dos corredores intermináveis onde a história parece respirar, compreendi que a criação humana se derrama como um rio no leito dos séculos — acima das fronteiras, das bandeiras e dos nacionalismos.
O Louvre sempre me causou esse duplo fascínio: maravilhamento e desconforto.
Maravilhamento pela capacidade humana de transformar o instante em eternidade; desconforto por saber que, sob o brilho das vitrines, repousam memórias arrancadas de outros povos.
Cada retorno ao museu foi também um reencontro com o paradoxo da civilização — o mesmo que agora se revela em sua forma mais literal.
A ironia do destino
Dois séculos depois das conquistas napoleônicas, o império virou museu, mas o museu jamais deixou de carregar o império dentro de si.
As obras que antes chegaram em carroças e galeões agora repousam sob sensores de movimento, protegidas por alarmes e guardadas por discursos sobre “preservação”.
E, no entanto, nesta manhã de outubro, o alarme soou de dentro — não como aviso, mas como metáfora: o guardião sentiu o que é perder o que guardava.
O Louvre, acostumado a deter o espólio dos outros, sentiu na pele o que é ser espoliado.
A frase do ministro — “é como se todos os franceses tivessem sido roubados” — ecoou como confissão involuntária: sim, a dor do roubo é insuportável. E foi essa dor que a França, por séculos, infligiu ao mundo.
Povos inteiros viram seus deuses empacotados, seus ídolos embarcados, seus séculos encerrados em caixas com destino a Paris.
Hoje, egípcios, gregos, turcos, nigerianos e italianos pedem de volta o que lhes foi tirado. Alguns processos correm na diplomacia: o Egito quer a restituição de estátuas; a Itália reivindica sete objetos arqueológicos; a Grécia insiste no retorno das esculturas do Partenon — repartidas entre Londres e Paris.
O roubo do Louvre, portanto, é mais que uma falha de segurança. É uma imagem invertida da história. O império que colecionou o mundo acorda agora com o mundo colecionando a sua vergonha.
Paris, capital da ironia
Enquanto as investigações prosseguem, os franceses caminham diante do museu fechado. Fotografam a fachada, comentam a audácia dos ladrões. Alguns se sentem ultrajados. Outros, envergonhados.
O governo promete reforçar a segurança nacional do patrimônio, revisar protocolos, instalar câmeras. Mas nenhuma tecnologia é capaz de vigiar o passado.
Na história, o Louvre já foi palco de outros roubos: em 21 de agosto de 1911, quando a Mona Lisa desapareceu — levada por Vincenzo Peruggia, um funcionário italiano que acreditava estar “devolvendo” a obra ao seu país; em 1976, quando a espada cravejada de pedras preciosas usada por Carlos X na coroação evaporou; em 1983, quando armaduras renascentistas sumiram; em 1989, quando uma armadura italiana foi roubada e só voltou em 2021.
O museu mais vigiado do mundo, ironicamente, vive sendo roubado. Talvez porque não exista alarme contra o tempo — e o tempo cobra.
Quando o roubo vira consciência
Este novo furto, calculado e silencioso, talvez tenha um efeito que Napoleão jamais imaginou: devolver à França um pouco do desconforto moral que espalhou pelo planeta.
A dor que hoje o Louvre sente — a perda de algo grandioso, carregado de história e valor — é exatamente o que tantas civilizações sentiram ao ver seus deuses, papiros e esculturas partindo rumo ao “progresso europeu”.
Não se trata de negar o Louvre — ele é um dos templos mais extraordinários da humanidade. Mas é preciso repensá-lo: não apenas como guardião da criação humana, mas como testemunha de um saque global que a arte sublimou.
A civilização começa quando um povo aprende a proteger o que é seu; e amadurece quando reconhece o que é dos outros.
O Louvre, ferido e introspectivo, talvez esteja diante de sua obra mais difícil: restaurar sua própria essência.
Entre o brilho das joias roubadas e o peso das peças que guarda, há uma lição que não cabe em vitrines — a de que nenhum museu é maior que a verdade que omite.
O Louvre foi roubado
Mas, talvez pela primeira vez, o roubo sirva não para empobrecer — e sim para jogar luz sobre os crimes que a História se recusa a enterra
https://www.brasil247.com/blog/o-dia-em-que-o-louvre-compreendeu-o-egito
21 de outubro de 2025
Crime e Prescrição, por Washington Araújo
Se Dostoievski tivesse vivido no Brasil, não teria escrito “Crime e Castigo”, mas “Crime e Prescrição”


Se Dostoievski tivesse nascido no Brasil, Raskólnikov não seria atormentado pela culpa — apenas aguardaria o prazo da prescrição. O sangue seco na cena do crime teria se dissolvido na lentidão dos tribunais, convertido em processo arquivado, transformado em manchete esquecida. Aqui, o castigo não é o desfecho: é a ausência dele. A culpa, quando surge, não queima, apenas sussurra até perder o timbre.
No Brasil, o crime não se conclui, apenas muda de foro. É uma coreografia bem ensaiada entre o poder e a paciência, uma dança lenta em que cada passo processual serve para adiar o fim da música. As leis, com seus prazos generosos e labirintos de recursos, são o tapete sobre o qual os culpados desfilam com elegância. A prescrição não é exceção — é um estilo de vida, uma arte nacional de fazer o tempo servir à conveniência.
Se Dostoievski tivesse olhado esse país, talvez escrevesse não sobre o tormento da consciência, mas sobre o requinte da justificativa. Raskólnikov seria um deputado em busca de foro privilegiado; Sônia, uma consultora de imagem ensinando-o a parecer arrependido na televisão. A tragédia daria lugar ao cinismo, e o arrependimento à assessoria de imprensa.
Essa reflexão, contudo, não é uma jabuticaba brasileira. O fenômeno da impunidade vestida de formalidade jurídica também se alastra por democracias antigas e novas, de diferentes continentes, onde o poder aprendeu a disfarçar o erro sob o manto elegante da legalidade.
O Brasil é um terreno onde o crime floresce em vasos de impunidade. Aqui, o erro não pesa — flutua. Os corruptos trocam de partidos como de ternos, e a vergonha é apenas um intervalo breve entre duas entrevistas. A punição se tornou um rumor e a ética, um adereço de discurso. Somos uma civilização que aprendeu a transformar delitos em narrativa de sucesso e aplaudir quem consegue trapacear com sofisticação.
No coração dessa ironia está o que Dostoievski melhor compreendeu: o ser humano é um abismo que raciocina. O escritor russo não descrevia personagens — dissecava consciências. Seus protagonistas falavam como quem se interroga diante do espelho do próprio erro. Criador de diálogos interiores que pareciam cavernas, Dostoievski fez da dúvida uma forma de revelação. Sua genialidade estava em capturar o instante em que o pensamento se torna culpa e a culpa, pensamento — algo que nem o cinema conseguiu reproduzir inteiramente.
Foi ele quem inaugurou a literatura como autópsia moral. De Kafka a Sartre, de Camus a Clarice Lispector, todos beberam desse mesmo subterrâneo: o de olhar o homem por dentro, onde o crime não é apenas ato, mas sintoma.
Mas no Brasil essa escavação seria inútil. Aqui, o que há não é introspecção, é anestesia. A consciência foi substituída por jurisprudência. Os dilemas morais, por pareceres técnicos. O país se comporta como um corpo que aprendeu a conviver com a febre sem jamais procurar a causa da doença. A impunidade nos habita como uma substância invisível — uma espécie de morfina cívica que torna suportável o intolerável.
E talvez fosse essa a metáfora central de “Crime e Prescrição”: o Brasil como um organismo que não cicatriza, mas se acostuma com a ferida. Um país que cobre as marcas com novas camadas de maquiagem institucional, até o rosto se tornar irreconhecível.
Enquanto isso, seguimos colecionando escândalos como quem coleciona selos — com paciência, com método, com certo orgulho da raridade de cada caso.
No fim, Dostoievski entenderia: o verdadeiro castigo brasileiro é não sentir mais nada. Nem indignação, nem vergonha, nem espanto. Aqui, o crime amadurece até virar costume. E quando o costume se instala, a justiça deixa de ser esperança para virar rumor de outro século.
No Brasil, a tragédia não termina em redenção — termina em prazo. E o que prescreve, antes da pena, é o caráter coletivo.
https://revistaforum.com.br/opiniao/2025/10/19/crime-prescrio-por-washington-araujo-190084.html
19 de outubro de 2025
Darcy faria falta em qualquer época; nesta, faz falta dobrada
Darcy Ribeiro antecipou que educação definiria o destino nacional; sua ausência mostra um país reduzido a improviso, intolerância e desigualdade institucionalizada contra milhões.


Convivi longos anos no Senado Federal com Darcy Ribeiro, à época em que era senador da República. Sempre muito culto, apaixonado pelas próprias ideias e atento às dos outros, espontâneo ao emitir opiniões, passional quando ouvia o Hino Nacional ou, no exterior, via a bandeira brasileira. Era desses homens que não cabem em um só ofício: antropólogo, educador, romancista, político. Darcy não se limitava a observar o Brasil; buscava reinventá-lo. Hoje, quando a mediocridade ocupa cadeiras de poder e a intolerância corrói a vida pública, a falta que ele nos faz é a falta de projeto, de grandeza, de coragem.
Darcy tinha uma visão orgânica da nação. Não via os brasileiros como somatória de indivíduos dispersos, mas como povo em construção, obra inconclusa. Daí sua obsessão por educação, pela escola como instrumento de transformação e como trincheira contra a desigualdade. Foi ele quem disse, com a contundência que só os visionários possuem: “A crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto.” Denunciava, com clareza, que manter o povo na ignorância sempre foi estratégia de poder. Meio século depois, essa denúncia permanece atualíssima, como se escrita ontem.
Não era apenas pensador. Foi homem de ação. Esteve ao lado de Brizola na fundação dos CIEPs, escolas integrais que poderiam ter revolucionado a educação brasileira. Imaginava crianças tendo acesso não apenas a aulas, mas a alimentação digna, cultura, esporte, cidadania. O projeto foi interrompido, ridicularizado, desmontado. Hoje, quando ainda discutimos merenda escolar e professores mal remunerados, percebemos a dimensão de sua ausência: Darcy ofereceu caminhos, mas preferimos os atalhos da improvisação e do descaso.
Havia nele também a paixão pelo Brasil profundo. Seus estudos sobre povos indígenas não foram distantes ou burocráticos: foram mergulhos existenciais, convívio, respeito. Darcy não apenas escreveu sobre os indígenas, mas aprendeu com eles, defendeu sua dignidade, denunciou sua perseguição. Foi perseguido por isso, exilado, mas não recuou. Sua obra O Povo Brasileiro é talvez o mais completo retrato de quem somos: um país mestiço, complexo, criativo, capaz de gerar beleza e violência na mesma intensidade.
E como romancista, Darcy também se rebelou contra as fronteiras acadêmicas. Quis contar histórias, dar voz a personagens, ampliar a imaginação nacional. Entendia que a literatura, assim como a antropologia, também podia ser ferramenta de emancipação. Darcy escrevia como quem luta. Pensava como quem ama. Agia como quem sonha.
A falta que ele faz não é apenas a ausência de um intelectual. É a ausência de um horizonte. O Brasil de hoje, fragmentado por ódios fabricados e fake news, carece de alguém que lembre que somos um só povo, que não há futuro sem educação, que não há nação sem dignidade.
Darcy faria falta em qualquer época; nesta, faz falta dobrada.
Enquanto não surgem outros Darcys, resta-nos reler suas obras, recuperar seus projetos, assumir sua coragem. Porque, sem isso, seremos apenas um país à deriva, construindo cada dia menos, destruindo cada dia mais.
18 de outubro de 2025
Nobel de Literatura escreve na única língua que até o diabo respeita
A língua mais indecifrável da Europa consagra Krasznahorkai como voz literária global. Suas frases apocalípticas desafiam leitores, tradutores e, dizem, até o diabo.


Em minhas muitas viagens pelo mundo — e foram mais de três vezes em mais de 62 países, no intervalo de 1983 a 2024 — amadureci uma convicção inabalável: a única língua que o diabo respeita é, de longe, o húngaro. Isso mesmo. O Ente Mau, com sua astúcia e fluência multinacional, entende significados, linhas e entrelinhas de centenas de idiomas, dialetos e dialetinhos. Mas tropeça, se atrapalha e, se bobear, cai sentado ao ouvir uma frase húngara.
Em Budapeste, portanto, ele se vê vulnerável. Os humanos dali têm, portanto, uma vantagem tática: podem confundi-lo com palavras incompreensíveis. O que, convenhamos, é uma excelente arma de resistência.
Não é exagero. O idioma húngaro é um Everest linguístico. Quem ousa escalá-lo descobre que a gramática parece ter sido escrita por um anjo distraído ou por um demônio meticuloso — há controvérsias.
A pronúncia? Um balé de sons que desafia até as línguas mais flexíveis. O plural não se comporta como plural, os sufixos multiplicam-se como coelhos, e o verbo parece praticar ioga: dobra-se, contorce-se e aparece sempre num lugar diferente da frase. Aprender húngaro é como jogar xadrez tridimensional contra alguém que não avisa quais são as regras.
Dito isso, faz todo sentido que um mestre das palavras tão intraduzíveis tenha levado para casa o prêmio literário mais cobiçado do planeta. László Krasznahorkai — nome que parece conjuração! — acaba de ser laureado com o Prêmio Nobel de Literatura. Um escritor húngaro que escreve frases do tamanho de quarteirões, cheias de curvas, abismos e fendas semânticas. Ler Krasznahorkai é como atravessar um labirinto de espelhos com um copo d’água na cabeça — e chegar ao fim sem derramar uma gota.
A Academia Sueca justificou o prêmio dizendo que sua obra é “convincente e visionária, reafirmando o poder da arte em meio ao terror apocalíptico”. E não é hipérbole. Seus livros têm mais pontos de tensão que uma reunião de condomínio com aumento de taxa. Susan Sontag o chamou de “mestre do apocalipse”. O cineasta Béla Tarr transformou suas histórias em filmes longos, lentos e hipnóticos — e foi aclamado no mundo todo.
Um deles, Harmonias de Werckmeister, nasceu do romance A Melancolia da Resistência, lançado em 1989 na Hungria e apenas em 1998 no mercado de língua inglesa. A trama começa quando um circo chega a uma cidadezinha levando — veja bem — uma baleia empalhada. Sim, uma baleia. Empalhada. Se Franz Kafka estivesse de bom humor e Fiódor Dostoiévski tivesse tomado um café a mais, talvez escrevessem algo assim.
Krasznahorkai tem 71 anos e nasceu em 1954 na pequena Gyula, em plena Hungria comunista. Filho de um advogado e de uma funcionária do Ministério do Bem-Estar Social, foi militar desertor — desertou porque, segundo contou, não suportava ordens absurdas —, tocou piano em banda de jazz e estudou literatura em Budapeste. Seu primeiro romance, Satantango (1985), foi um sucesso instantâneo no país e ganhou uma adaptação cinematográfica de mais de sete horas de duração (sim, sete!). O diabo que se arrisque a ver até o final.
A proeza linguística do escritor vai além da temática sombria. Ele publica romances com um único ponto final em 400 páginas — caso de Herscht 07769, lançado no ano passado nos Estados Unidos. Imagine o leitor — sem fôlego, tateando vírgulas como quem procura oxigênio no deserto — tentando encontrar onde termina uma frase. Não termina.
É como correr uma maratona com os olhos. E ainda assim, quem chega ao fim sente que valeu cada passo. Como ele próprio disse certa vez: “Minhas frases são longas porque o mundo não cabe em sentenças curtas.”
Krasznahorkai não é daqueles que escrevem para agradar algoritmos ou fazer dancinhas literárias no TikTok. Em entrevista ao The New York Times em 2014, disse que buscava “um estilo absolutamente original”, livre de ancestrais literários. Nada de versões recicladas de Kafka, Dostoiévski ou Faulkner.
Ele queria ser ele mesmo: um terremoto sintático. E conseguiu. Como também afirmou: “Eu escrevo para ouvir o silêncio que vem depois do caos.”
Steve Sem-Sandberg, do comitê do Nobel, falou de seu “estilo épico poderoso e musicalmente inspirado”. Musicalmente inspirado — talvez ecoando aquelas noites em que ele tocava piano, enquanto imaginava um mundo prestes a desabar.
Para os húngaros, ver Krasznahorkai receber o Nobel tem um gosto especial. Ele é apenas o segundo cidadão do país a alcançar tal feito, depois de Imre Kertész, laureado em 2002. O húngaro, afinal, é língua de poucos prêmios, mas de profundezas insondáveis. Quando alguém escreve nela com maestria, é como se domasse um dragão — e ainda obrigasse o dragão a recitar poesia.
Há algo de saborosamente irônico nisso: o idioma mais intrincado do planeta servindo de canal para uma literatura que expõe o mundo em ruínas, o colapso das certezas, a beleza que nasce das rachaduras. Krasznahorkai não escreve para confortar. Escreve para inquietar, como quem puxa o tapete da realidade e pergunta: “E agora, o que você vai fazer em queda livre?”.
Em outra de suas frases lapidares, declarou: “O apocalipse não é um evento, é um estado de espírito.”
Nos últimos anos, o Nobel buscou ampliar seu horizonte geográfico e cultural. Ganhou a sul-coreana Han Kang com A Vegetariana, o tanzaniano Abdulrazak Gurnah e a francesa Annie Ernaux. Agora chega a vez de um homem que escreve em uma língua falada por menos de 13 milhões de pessoas — e compreendida fluentemente, arrisco dizer, por metade delas. O húngaro é o idioma mais parecido com um cofre: poucos têm a chave.
Para quem acha que dominar um novo idioma é fazer o aplicativo de línguas sorrir com coraçõezinhos, recomendo: tente pronunciar Krasznahorkai corretamente. Tente entender um verbo húngaro no passado perfeito condicional. Tente escrever uma carta de amor sem parecer que está invocando entidades. Se conseguir, o diabo vai se levantar e aplaudir de pé.
Por ora, fica a lição de Budapeste: mesmo nas trevas do apocalipse, a arte vence. Mesmo nas frases mais longas que a vida útil de uma lâmpada de poste, a literatura respira. E mesmo quando o idioma é uma muralha, há quem a escale para gritar lá de cima que a imaginação humana é indomável. Krasznahorkai é esse grito. E o húngaro, esse eco que nem o diabo entende — e talvez por isso mesmo respeite.
10 de outubro de 2025
Código humano da linguagem
Cada prefixo revela uma forma de existir: o per que busca o máximo, o co que une, o re que refaz e o in que aprofunda


Há uma alquimia secreta nas palavras. Elas respiram, reagem, se combinam. São organismos vivos, feitos de som e sentido. Cada prefixo é uma centelha de pensamento. Uns inflamam, outros apaziguam; alguns constroem pontes, outros levantam muros. Entre eles, há um que parece conter a fórmula do limite: o per.
Sempre tive uma curiosidade quase obsessiva pelo fenômeno da linguagem humana. Desde a adolescência me fascina a etimologia — esse mistério das origens sonoras do pensamento. Quis entender como as palavras nascem, se adaptam, criam raízes e, como árvores de mesma seiva, se multiplicam em troncos diferentes. Fascina-me ver como um único prefixo pode gerar mundos inteiros: mudar o destino de uma ideia, alterar o gesto de um povo, aproximar ou afastar consciências. É na genealogia das palavras que enxergo a cartografia do espírito humano.
Em química, o per representa o grau máximo. É o ponto em que uma molécula, saturada de átomos, beira o colapso. O instante entre plenitude e ruína. E há nisso uma exata metáfora da vida humana — porque também nós desabamos quando ultrapassamos o ponto de equilíbrio.
O per é o prefixo do excesso e da perfeição. “Perfeito” vem do latim perfectus: o que foi feito até o fim. Nada lhe falta — e por isso mesmo, nada mais pode crescer. Toda perfeição é um começo que se encerra.
Mas há outros termos que revelam o duplo rosto do per: perdão, perigo, perverso, perene, perseverar. Em todos, um traço de risco. O per toca o extremo — o ponto em que o humano se transcende ou se destrói.
Perdoar, por exemplo, é amar no limite. É o amor que suporta mais do que a própria estrutura parecia permitir. O per é o território da entrega, o gesto de quem dá tudo e, por isso, se transforma.
A perfeição, afinal, é sempre breve. É o instante em que algo está inteiro, antes de começar a se desfazer.
Mas o mundo não se sustenta apenas com intensidades. Toda forma precisa de vínculo para não se esfarelar. E é aí que surge o segundo prefixo — o co.
O co vem do latim cum: estar com. Está em companheiro, comunidade, confiança, compreender, construir. Cada uma dessas palavras descreve um modo de partilhar o mundo.
Enquanto o per nos eleva, o co nos enraíza. O primeiro busca o ápice; o segundo, o encontro. O per é vertical; o co, horizontal.
Companheiro é aquele com quem se reparte o pão; compreender é tomar junto o sentido; construir é erguer com.
O co é o prefixo civilizatório — o cimento das relações, a ética da coexistência. Nenhuma fé, ciência ou arte nasce isolada. Tudo é cooperação. Até o silêncio, quando compartilhado, se torna linguagem.
O co é a lembrança de que viver é um verbo plural. Que nada floresce na solidão, e que toda grandeza é comunhão.
Mas há quedas, rupturas, regressos. A vida pede não apenas união, mas reconstrução.
E aí entra o terceiro prefixo — o re.
O re é o prefixo do retorno e da esperança. Vem do latim iterum: outra vez. Está em renascer, recordar, recomeçar, resistir, reconciliar. Cada palavra com re traz a promessa de que nada está perdido para sempre.
Recordar é trazer de volta ao coração. Recomeçar é devolver ao tempo uma nova chance. Resistir é manter-se de pé quando tudo em volta cede.
O re é o prefixo do humano que recusa a ruína como destino.
Reconstruir, reconciliar, repensar: três verbos que definem civilizações inteiras. Depois das guerras, das falências, dos desenganos, é sempre o re que resta — o que refaz, o que insiste, o que renova.
Mas há um movimento ainda mais profundo: o in.
O in vem do latim intra: dentro. Está em inspiração, intuição, início, inteiro, intensidade, interior.
Enquanto o per é o gesto do máximo, o in é o gesto do mergulho. É o prefixo da consciência e da introspecção.
Inspirar é deixar entrar o ar que cria. Intuir é perceber sem precisar provar. Integrar é reunir o disperso. O in é o espaço interior da verdade, onde o mundo se aquieta.
Esses quatro prefixos — per, co, re e in — desenham a gramática da condição humana.
Buscamos o máximo (per), precisamos do outro (co), refazemos o que se quebra (re), e mergulhamos dentro de nós (in).
Tudo o que é vivo obedece a esse ciclo.
E talvez seja essa a perfeição possível: não a ausência de falhas, mas a harmonia entre o que se expande, o que se une, o que se refaz e o que se recolhe.
A vida, afinal, é uma conjugação de prefixos — uma forma de linguagem que nos explica, mesmo quando as palavras faltam.
05 de outubro de 2025
A exploração disfarçada de competitividade espalha no Brasil a vírus do Dumping Social
Salários insuficientes, jornadas excessivas, ausência de proteções sociais e condições insalubres de trabalho tornam-se "vantagens competitivas"


No silêncio das fábricas que fecham suas portas e no desespero dos trabalhadores que perdem seus direitos básicos, prospera uma das mais perversas armas da concorrência desleal: o dumping social. Esta prática devastadora, que transforma direitos trabalhistas em obstáculos descartáveis, ameaça não apenas a dignidade de milhões de brasileiros, mas desestabiliza as bases de um mercado de trabalho justo e próspero.
O dumping social é como um atleta que usa drogas para vencer uma corrida: ganha vantagem artificial sacrificando sua própria saúde e a integridade da competição. Nesta analogia perversa, as "drogas" são os direitos trabalhistas suprimidos, o "atleta" é a empresa predatória, e a "corrida" é o mercado global onde todos deveriam competir em condições justas.
Imagine um restaurante que consegue oferecer pratos mais baratos porque não paga salários dignos aos garçons, não oferece equipamentos de segurança aos cozinheiros e força funcionários a trabalhar 12 horas sem descanso. Esse estabelecimento pratica dumping social: usa a exploração humana como ingrediente secreto para baixar artificialmente seus preços, prejudicando concorrentes honestos que respeitam seus trabalhadores.
Diferentemente do dumping tradicional, que envolve a venda abaixo do custo de produção, o dumping social manipula os próprios custos através da exploração da mão de obra. Salários insuficientes, jornadas excessivas, ausência de proteções sociais e condições insalubres de trabalho tornam-se "vantagens competitivas" perversas que geram danos não apenas aos trabalhadores, mas a toda sociedade.
O dumping social age como um cupim invisível roendo as vigas mestras do edifício trabalhista brasileiro: silencioso, persistente e devastador. Enquanto corrói os alicerces dos direitos conquistados, força empresas éticas a escolher entre sucumbir à concorrência desleal ou abandonar seus princípios morais.
O arsenal jurídico - O Brasil possui um arcabouço legal robusto para combater o dumping social, embora sua aplicação ainda seja incipiente. A legislação antidumping brasileira, baseada no Decreto nº 1.355/1994, Lei nº 9.019/1995 e Decreto nº 1.602/1995, estabelece os fundamentos legais para a defesa comercial, incluindo práticas sociais desleais.
O Código Civil brasileiro, em seus artigos 186, 187 e 927, tipifica o dumping social como ato ilícito, estabelecendo responsabilização por danos causados à sociedade. O Projeto de Lei 1615/2011, do deputado Carlos Bezerra, propõe regulamentação específica para punir o dumping social como prática de concorrência desleal, mas ainda aguarda aprovação.
O Tribunal Superior do Trabalho desenvolveu jurisprudência própria sobre o tema, reconhecendo que práticas reiteradas de violação aos direitos trabalhistas configuram dumping social, passível de indenização por danos morais coletivos.
Cenário brasileiro e casos emblemáticos - O Brasil ocupa posição ambígua neste cenário. Por um lado, o país possui legislação trabalhista robusta, com direitos consolidados como férias remuneradas, 13º salário e FGTS. Por outro, enfrenta constantes pressões para flexibilizar essas proteções sob o argumento da competitividade internacional.
Três casos recentes ilustram a gravidade do problema no país. Primeiro, a condenação milionária da Uber pelo Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, que impôs multa de R$ 1 milhão por dumping social, reconhecendo que a empresa sistematicamente desrespeitava direitos trabalhistas para obter vantagem competitiva.
Segundo, empresas terceirizadoras de serviços ocupam nove posições entre os 30 maiores devedores trabalhistas do país, demonstrando como a terceirização muitas vezes encobre práticas de dumping social. Essas empresas utilizam a precarização como estratégia para oferecer serviços mais baratos, prejudicando concorrentes que respeitam a legislação.
Terceiro, o setor calçadista brasileiro enfrenta denúncias constantes de dumping social, especialmente na região Sul, onde empresas sistematicamente violam direitos trabalhistas para competir com importações asiáticas.
Dumping Social em tempos de IA - A inteligência artificial emerge como uma nova fronteira para práticas de dumping social, criando desafios inéditos para o mercado de trabalho brasileiro. O Brasil debate atualmente, no âmbito dos BRICS, questões sobre inteligência artificial e proteção social no mercado de trabalho, reconhecendo a urgência do tema.
A implementação da inteligência artificial na sociedade brasileira traz o risco de ampliar as desigualdades já existentes, criando um novo tipo de dumping social baseado na substituição acelerada de trabalhadores por algoritmos sem a devida proteção social.
Empresas que utilizam IA para reduzir drasticamente seus quadros funcionais, sem oferecer requalificação ou transição adequada, praticam uma forma sofisticada de dumping social. Esta estratégia permite ofertar serviços a preços artificialmente baixos, impossíveis para concorrentes que mantêm compromissos sociais com seus trabalhadores.
Impactos Econômicos e Sociais - A indústria têxtil brasileira exemplifica essa tensão estrutural. Enquanto empresas nacionais respeitam normas trabalhistas, competem com importações de países onde trabalhadores recebem salários até dez vezes menores, sem qualquer proteção social. Essa concorrência desleal resulta no fechamento de fábricas e perda de empregos formais, alimentando um ciclo vicioso de precarização.
Paradoxalmente, dados oficiais de 2025 mostram que o Brasil viveu em 2024 a maior redução da desigualdade social dos últimos anos, com crescimento de 10,7% na renda dos mais pobres. Esse progresso torna ainda mais urgente o combate ao dumping social, que ameaça reverter conquistas sociais importantes.
O dumping social funciona como uma máquina trituradora de sonhos, que devora sistematicamente direitos conquistados ao longo de décadas, transformando proteções trabalhistas em "luxos" incompatíveis com a competitividade. Essa lógica destrutiva não apenas empobrece trabalhadores, mas fragiliza toda a estrutura econômica nacional.
Os Sindicatos - Os sindicatos brasileiros desempenham papel fundamental no combate ao dumping social, atuando como verdadeiros zeladores dos direitos trabalhistas contra a voracidade de empresas predatórias. Os sindicatos representativos das respectivas categorias profissionais podem ajuizar ações moleculares postulando a remoção do ilícito, em conjunto com demais pleitos, inclusive de danos morais coletivos por dumping social.
A estratégia sindical evoluiu significativamente nos últimos anos, incorporando ferramentas jurídicas sofisticadas para identificar e combater práticas de dumping social. Os sindicatos desenvolveram metodologias para monitorar empresas que sistematicamente violam direitos trabalhistas, criando bancos de dados compartilhados que permitem ações coordenadas entre diferentes categorias profissionais.
Também relevante é a atuação sindical no setor de tecnologia, onde os sindicatos desempenham papel fundamental na defesa dos interesses dos trabalhadores e na busca por soluções que garantam uma transição justa na era da inteligência artificial. Esta atuação pioneira estabelece precedentes importantes para combater o dumping social tecnológico, modalidade emergente que ameaça milhões de postos de trabalho no país.
Dumping Social na América do Norte: A exploração disfarçada de competitividade - Na América do Norte, o dumping social manifesta-se de forma sofisticada, especialmente no setor de transportes canadense, onde o Canadá enfrenta riscos crescentes de exploração de trabalhadores estrangeiros na indústria de caminhões, o que pode ter consequências para as condições de trabalho, conforme relatório de setembro de 2024. Nos Estados Unidos, a prática ganha contornos particulares com a exploração de trabalhadores imigrantes indocumentados, que são forçados a aceitar salários abaixo do mínimo legal e condições precárias por temor à deportação. O setor agrícola americano, especialmente na Califórnia e Texas, concentra milhares de casos onde trabalhadores latinos trabalham até 14 horas diárias sem direito a pausas, recebendo entre US$ 3 a US$ 5 por hora - muito abaixo do salário mínimo federal de US$ 7,25. Empresas como Driscoll's e outras gigantes do agronegócio foram multadas repetidamente por práticas de dumping social, mas continuam operando com base na exploração sistemática da vulnerabilidade migratória.
O paradoxo aparece forte na Europa, berço dos direitos trabalhistas - A União Europeia, paradoxalmente, enfrenta graves problemas de dumping social apesar de sua avançada legislação trabalhista. O Parlamento Europeu reconheceu oficialmente a necessidade de criar grupos de trabalho bilaterais e multilaterais para efetuar controles transfronteiriços quando há suspeita de dumping social, trabalho em condições ilegais ou fraude, evidenciando a dimensão do problema. Portugal figura entre os países mais afetados, onde a Agência Europeia denunciou vários casos de exploração laboral, relatando situações em que trabalhadores são obrigados a esconder-se, mentir e até pagar multas do próprio bolso, segundo investigação de 2018. Na Alemanha, o setor de construção civil e frigoríficos emprega sistematicamente trabalhadores do Leste Europeu em condições degradantes: poloneses e romenos trabalham 12 horas diárias por salários 40% inferiores aos alemães, vivendo em alojamentos superlotados fornecidos pelos empregadores. A empresa Tönnies, maior processadora de carne da Alemanha, foi multada em €16,5 milhões em 2020 por práticas de dumping social envolvendo mais de 7.000 trabalhadores estrangeiros.
Combate difícil, não impossível - O combate ao dumping social exige coordenação internacional. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estabelece padrões mínimos, mas sua aplicação permanece desigual. O Tribunal Superior do Trabalho tem admitido condenações por dumping social, sinalizando endurecimento da jurisprudência brasileira.
Alguns países europeus já implementam mecanismos de proteção, como taxas sobre produtos oriundos de práticas laborais predatórias. O Brasil precisa desenvolver instrumentos similares, equilibrando proteção social com competitividade econômica.
Para o Brasil, a questão supera o protecionismo econômico. Trata-se de defender um modelo de desenvolvimento que valorize o trabalho digno como elemento central do progresso social. A busca por competitividade não pode comprometer décadas de conquistas trabalhistas que distinguem sociedades democráticas de economias baseadas na exploração.
O desafio consiste em equilibrar abertura comercial com proteção social, garantindo que a globalização não se transforme numa corrida desenfreada rumo ao abismo dos direitos trabalhistas. A resposta judicial brasileira, embora ainda no início, indica caminhos promissores para coibir essa prática nociva que corrói as bases de uma sociedade que possa ser referida como justa e próspera.
31 de maio de 2025
Trump sufoca Harvard: retrocesso do conhecimento científico e humano, fuga de cérebros eleva Brasil e parceiros
Políticas da Casa Branca contra Harvard causam fuga de cérebros, beneficiando Brasil e países com visão científica estratégica


Quando um farol se apaga, o mundo não mergulha de imediato na escuridão. Mas os navegantes, privados de sua luz, começam a errar na rota, a colidir com rochedos ocultos, a duvidar do caminho. Harvard, por mais de um século, foi esse farol da ciência global. A decisão de Donald Trump de apagar essa luz não é apenas uma ruptura com a tradição acadêmica americana — é um convite ao caos na travessia do conhecimento. E, nesse cenário de sombras, outros países começam a acender suas próprias lanternas. Entre eles, inesperadamente, o Brasil.
Harvard no centro da tempestade - A Universidade de Harvard, um dos pilares da educação superior global, tornou-se alvo de um ataque político coordenado por Donald Trump. Em declarações recentes, o ex-presidente acusou a instituição de abrigar “ideologias antissemitas”, de manter “mais de 30% de estudantes estrangeiros” e de promover valores que seriam “contrários aos interesses americanos”. Como desdobramento, ameaçou cortar US$ 3 bilhões em subsídios federais, solicitou a entrega da lista de estudantes internacionais para “verificação de posicionamento político” e incentivou a revogação da certificação da universidade para receber estrangeiros. Harvard reagiu prontamente, acionando a Justiça e obtendo uma liminar, mas o episódio marca uma escalada preocupante no uso político de instituições acadêmicas.
Desde abril de 2025, a Casa Branca revisou US$ 9 bilhões em verbas federais destinadas à Universidade de Harvard, impondo condições rigorosas: o fim dos programas de diversidade, equidade e inclusão (DEI) e a adoção de critérios que levem em conta apenas o mérito em novas admissões. Diante da resistência da universidade, o governo congelou US$ 2,2 bilhões em fundos de pesquisa — especialmente os vinculados ao Departamento de Saúde e Serviços Humanos — atingindo diretamente estudos avançados em biomedicina e tecnologia de ponta.
Em maio, mais US$ 450 milhões em bolsas e contratos foram suspensos. As justificativas? Harvard seria, segundo aliados de Trump, um “reduto de liberalismo e antissemitismo”. Em um movimento ainda mais radical, o Departamento de Segurança Interna (DHS), sob o comando de Kristi Noem, revogou a certificação da universidade no Programa de Estudantes e Visitantes de Intercâmbio (SEVP). Com isso, novos alunos estrangeiros não podem mais se matricular, e 6.800 estudantes internacionais — 27% do corpo discente — foram obrigados a deixar os EUA ou buscar transferência.
Desinformação e distorções numéricas - Entre os argumentos de Trump está a suposta elitização e internacionalização excessiva da universidade, como se isso por si fosse uma falha. No entanto, a presença de estudantes internacionais — atualmente cerca de 31% do corpo discente — sempre foi um motor de inovação em Harvard, não um problema. Da mesma forma, circulam dados inflados sobre o número de prêmios Nobel ligados à instituição: embora frequentemente se repita que 161 laureados tenham alguma afiliação com Harvard, trata-se de um número que inclui ex-professores, pesquisadores visitantes e colaboradores temporários. Quando restrito aos que efetivamente cursaram Harvard, o número é significativamente menor, ainda que expressivo, com nomes como T. S. Eliot, Barack Obama, Henry Kissinger, Amartya Sen e Roger Kornberg entre os premiados.
Proporção global sob perspectiva crítica - Desde a criação do Prêmio Nobel, em 1901, foram entregues 626 prêmios a 978 pessoas e organizações no total. Mesmo considerando a estimativa generosa de 161 pessoas com algum tipo de vínculo com Harvard, isso representa cerca de 16,5% dos laureados no mundo. Um número impressionante, sem dúvida, mas que exige leitura cautelosa: a concentração de talentos e reconhecimento em uma só instituição reflete também uma desigualdade histórica na distribuição de recursos, oportunidades e visibilidade acadêmica no cenário global. O problema não está no mérito dos premiados, mas na lógica de centralização que muitas vezes marginaliza o conhecimento gerado fora do eixo EUA-Europa.
Uma ordem judicial temporária bloqueou a medida, mas a disputa legal continua. Paralelamente, o governo eliminou US$ 60 milhões em subsídios do DHS e ameaçou retirar a isenção fiscal da universidade. A pressão é clara: dobrar Harvard aos desígnios ideológicos da Casa Branca.
Fuga de cérebros e ameaças à liderança científica dos EUA - As consequências são imediatas: cientistas e pesquisadores, inseguros, começam a buscar alternativas em países como Canadá, Alemanha, França e Austrália. Governos e instituições acadêmicas desses países oferecem condições e programas especialmente elaborados para receber esse contingente qualificado.
Em 2024, os Estados Unidos investiram cerca de US$ 1 trilhão em pesquisa e desenvolvimento — 40% desse montante oriundo do setor público. O ataque atual ao coração do sistema universitário ameaça essa posição hegemônica, pondo em risco os avanços em inteligência artificial, biomedicina, física aplicada e tecnologias verdes.
O paralelo histórico mais evidente remonta à década de 1930. Perseguidos pelo nazismo, gênios como Albert Einstein, Leo Szilard e Wernher von Braun migraram para os Estados Unidos, impulsionando o Projeto Manhattan e consolidando a supremacia científica americana. A história pode agora se inverter. Ao invés de atrair talentos, os EUA podem se transformar em um território hostil à ciência, como já ocorreu na União Soviética sob Stalin ou, mais recentemente, na Rússia de Vladimir Putin, onde a perseguição ideológica afastou intelectuais de todas as áreas.
Vozes influentes da ciência internacional denunciam a política atual. Carl Bergstrom, da Universidade de Washington, declarou: “Estamos vendo uma liquidação do talento acadêmico americano”. A imunologista Yasmine Belkaid, ex-diretora de pesquisa do NIH, alertou: “Perder uma geração de cientistas é irreparável”. Leo Rafael Reif Groisman, ex-presidente do MIT, acrescentou: “Trump subestima o valor da liderança científica dos EUA, um erro estratégico grave”. Kevin Trenberth, ex-cientista do Centro Nacional de Pesquisa Atmosférica, lamentou: “Já sentimos um vácuo no fluxo de novos cientistas”.
A revista Nature apontou que 75% dos cientistas entrevistados consideram deixar os Estados Unidos. A China, com investimentos crescentes em ciência, tecnologia e inovação, já atua para absorver esse capital humano. A fragilidade da pesquisa americana, neste contexto, representa uma ameaça existencial ao seu papel global.
Uma universidade de presidentes e pioneiros - Ao longo dos séculos, Harvard formou oito presidentes dos Estados Unidos, entre eles John Adams, Franklin D. Roosevelt, John F. Kennedy e Barack Obama. Também foi o berço acadêmico de mentes decisivas nas ciências humanas, exatas e médicas — como Robert Oppenheimer, Leda Cosmides, Henry Louis Gates Jr. e Michael Sandel. Essa herança, em vez de ser exaltada, está sendo usada como arma política. A ofensiva atual tenta reverter décadas de valorização da liberdade acadêmica, do mérito intelectual e da pluralidade de pensamento. Transformar universidades em campos de batalha ideológicos é um risco não apenas para Harvard, mas para a própria democracia.
O real embate: ciência ou ideologia - O que está em disputa vai além da imagem de uma universidade. Trata-se da autonomia do pensamento científico, da proteção a estudantes estrangeiros e da integridade das instituições diante do populismo autoritário. Trump, ao mirar Harvard, sinaliza um projeto mais amplo de vigilância ideológica e submissão das universidades a agendas partidárias. Ao invés de fortalecer a educação, essas medidas a enfraquecem. O conhecimento científico e humanista, por natureza, precisa de oxigênio, liberdade e diversidade para florescer. E se a universidade mais prestigiada do mundo está sendo cercada, o alerta vale para todas as demais.
O Brasil aproveita o vácuo: ciência como projeto nacional - Diante da tempestade que assola Harvard, o Brasil enxerga uma rara janela de oportunidade. Em 24 de maio de 2025, o governo Lula lançou um programa estratégico, liderado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), comandado por Luciana Santos.
A proposta: atrair 500 cientistas estrangeiros, especialmente nas áreas de imunologia, biotecnologia e saúde pública. A iniciativa é respaldada por instituições como Fiocruz e Instituto Butantan e responde diretamente à crise nos Estados Unidos, agravada pela nomeação de Robert F. Kennedy Jr. — crítico das vacinas — para a Secretaria de Saúde americana.
O programa Conhecimento Brasil, do CNPq, prevê R$ 1 bilhão em cinco anos para repatriar 1.000 pesquisadores, incluindo brasileiros atualmente radicados nos EUA, Reino Unido e Argentina. Além disso, busca criar laboratórios de excelência em solo nacional. Ricardo Galvão, presidente do CNPq, comparou o plano às políticas adotadas pela Alemanha e Coreia do Sul durante grandes transições geopolíticas.
Em 2024, o Brasil investiu R$ 14,9 bilhões em ciência — seis vezes mais que na gestão anterior. A Capes recebeu aumento de 20% e o CNPq, 15%. Parcerias com empresas privadas, como a farmacêutica dinamarquesa Novo Nordisk, visitada por Lula em 2025, também fortalecem a infraestrutura científica nacional.
Segundo o infectologista Julio Croda, o foco em vacinas de RNA — ainda inexistentes no Brasil — pode colocar o país em novo patamar. A expertise vinda de Harvard e outras universidades dos EUA pode acelerar esse processo.
Desafios persistem, mas a oportunidade é histórica - Apesar do otimismo, o cenário brasileiro não é isento de críticas. Marcus Oliveira, da UFRJ, adverte para a fragilidade do financiamento à ciência de base e a dependência de vontades políticas. O biomédico Atila Iamarino aponta a ausência de um plano estratégico de longo prazo.
O episódio do desperdício de 8 milhões de doses da Coronavac, em 2023, a um custo de R$ 260 milhões, e os atrasos nas entregas de vacinas da Covid-19 abalaram a confiança do setor. A crise da varíola dos macacos também expôs a inexistência de estoques reguladores e logística eficiente.
No entanto, a conjuntura internacional reposiciona o Brasil. Como declarou Lula em discurso no Japão, em 2025, o país aspira ser uma “voz autônoma” no cenário global. A ciência é um dos caminhos mais sólidos para concretizar esse protagonismo. O momento exige planejamento, execução competente e proteção à autonomia das instituições.
Quando o farol de Harvard treme, outros se apressam a acender suas luzes. O Brasil tem, diante de si, a chance de não apenas iluminar seu próprio caminho, mas de tornar-se novo ponto de referência para o mundo. O conhecimento não tolera vácuos: ele migra, se instala onde é acolhido e floresce onde há liberdade, investimento e visão.
Nesta travessia incerta da ciência global, o Brasil pode deixar de ser passageiro para assumir o leme. Resta saber se terá coragem de navegar com ousadia, e não apenas com esperança. A hora é de escolher entre esses versos do nosso hino: “deitada eternamente em berço esplêndido” ou “verás que um filho teu não foge à luta”. Não apenas nas lutas pelo progresso científico, mas também em todas as outras lutas, igualmente importantes e igualmente inadiáveis.
27 de maio de 2025
Negacionismo científico ameaça séculos de avanços; vacinas salvam milhões todos os anos
Só na última década, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), vacinas salvaram cerca de 10 milhões de vidas globalmente


Olho para o mundo hoje, em 11 de abril de 2025, e me preocupo profundamente com o que vejo: uma geração que corre o risco de jogar fora séculos de conhecimento científico como se fosse algo descartável. Esse negacionismo científico é um perigo real, que ameaça o bem mais precioso que temos — a preservação da nossa saúde. Ao longo da história, a ciência nos deu ferramentas para viver melhor e mais tempo.
Pense na teoria microbiana de Pasteur, que revelou os germes como causa de doenças; na penicilina de Fleming, que revolucionou os tratamentos; na teoria da evolução de Darwin, base para avanços médicos; na descoberta dos raios X por Röntgen, essencial para diagnósticos; e na anestesia de Morton, que tornou cirurgias suportáveis. Esses marcos salvaram incontáveis vidas e elevaram nosso bem-estar. Mas hoje, vejo esse legado sendo questionado por desinformação e ideologia, como se estivéssemos desmontando uma ponte de aço forjado para atravessar um rio caudaloso, trocando-a por tábuas podres de superstição.
Acredito que já passa da hora de a ONU, Organização das Nações Unidas, tão logo recupere suas forças e possa continuar atuando em favor da paz mundial e do bem-estar da espécie humana, levantar a discussão em sua assembleia geral tornando a vacinação, seguindo todos os protocolos científicos, um direito humano básico, fundamental. Não é apenas uma questão de saúde pública, mas de dignidade e sobrevivência. Garantir que cada pessoa no planeta tenha acesso a vacinas seria um marco histórico, um compromisso global com a vida, acima de interesses políticos ou econômicos.
As vacinas: um escudo da ciência - Neste artigo, quero focar nas vacinas, um dos maiores triunfos da ciência. Vou listar as seis mais importantes do mundo e sua cronologia: a vacina contra varíola, criada por Jenner em 1796, erradicou uma doença que matava milhões; a da poliomielite, de Salk (1955), combateu a paralisia infantil; a do sarampo, de Enders (1963), freou uma infecção letal; a contra tétano, de Behring (1890), evitou mortes por uma bactéria comum; a da difteria, de Roux (1888), controlou uma doença respiratória grave; e a da gripe, desenvolvida nos anos 1930 por Smith e outros, reduzindo surtos sazonais.
Só na última década, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), vacinas salvaram cerca de 10 milhões de vidas globalmente, graças ao acesso amplo e campanhas eficazes. A pandemia de Covid-19 é um exemplo gritante disso. Desde 2020, o vírus infectou mais de 700 milhões de pessoas e causou cerca de 7 milhões de mortes no planeta, segundo a OMS. Mas as vacinas mudaram esse cenário.
As principais — Pfizer-BioNTech, Moderna, Oxford-AstraZeneca, Sinovac e Johnson & Johnson — começaram a ser aplicadas em 2021 e, junto com campanhas educacionais, evitaram um crescimento exponencial de vítimas. Sem elas, os números poderiam ser catastróficos, com estimativas sugerindo até 20 milhões de mortes adicionais. A ciência, mais uma vez, foi nossa salvação, um farol erguido em meio a uma tempestade de caos viral.
O papel vital do Instituto Butantan - Aqui no Brasil, temos um orgulho especial: o Instituto Butantan, em São Paulo, é o maior fabricante de vacinas do hemisfério sul. Ele produz a CoronaVac (Covid-19), a vacina da dengue (pioneira no mundo), a da gripe, a antirrábica e a do tétano, entre outras. Em 2024, o Butantan forneceu mais de 100 milhões de doses ao Sistema Único de Saúde (SUS), que distribui gratuitamente essas vacinas. O Brasil é pioneiro na vacina da dengue e referência na produção da CoronaVac, exportada para vários países. Esse trabalho é um escudo para nossa população. Falando da vacina contra a gripe, ela tem evitado tragédias, especialmente entre crianças e idosos. No Brasil, campanhas anuais protegem milhões, reduzindo mortes por complicações como pneumonia. Só em 2023, a OMS estima que a vacinação salvou cerca de 150 mil vidas no país. Eu mesmo sou testemunha disso: tomei todas as doses da vacina contra Covid-19 e, desde que completei 60 anos, recebo anualmente a vacina antigripal. Sinto-me seguro, protegido por uma segurança adicional que funciona como um teflon contra os mais diferentes tipos de vírus, graças ao trabalho incansável de milhares de cientistas em todas as partes do mundo.
E me pergunto: numa sociedade em que o conhecimento enche o mundo assim como as águas enchem o mar, será minimamente sábio e razoável que deixemos proliferar narrativas falsas, amparadas em superstições e crenças, que veem na vacina não um aliado, mas um inimigo?
Um apelo pela razão - Cientistas renomados reforçam essa verdade. Albert Sabin disse: “as vacinas são a maior conquista da medicina para a humanidade”. Anthony Fauci afirmou: “negar vacinas é negar a razão”. Drauzio Varella declarou: “vacina é vida, é ciência em ação”. Margaret Chan alertou: “sem vacinas, voltamos à era das trevas da medicina”. Jonas Salk completou: “a esperança está na ciência, não na ignorância”. Faço um apelo: governos, invistam em vacinação e educação científica; famílias, vacinem seus entes queridos.
A OMS aponta que a cobertura vacinal caiu 5% desde 2019, deixando 20 milhões de crianças desprotegidas em 2024. Isso é um retrocesso perigoso, como se estivéssemos apagando as brasas de uma fogueira que nos mantém vivos em uma noite gelada.
A ciência não pode ser refém de discursos políticos ideológicos. Vacinar é um ato de responsabilidade, e eu clamo por uma vacinação em massa de toda a espécie humana — um compromisso com a vida, acima de superstições ou divisões. Que a razão prevaleça.
11 de abril de 2025
