Observatório da Imprensa

Apenas um exercício mental

Na quinta-feira (14/4), o sociólogo Fernando Henrique Cardoso escreveu um artigo que, sendo a política um alentado jogo de xadrez, desarrumou completamente as peças do tabuleiro. Nem seus leais admiradores e amigos de longa data se atreveram a parabenizá-lo em público. Obviamente isto deve ter doído fundo na alma do autor que é referido por 10 entre 10 pessoas que o conhecem como o próprio ‘príncipe da vaidade’.

E por que o artigo mexeu com os brios de gente aliada e forneceu munição pesada a tantos de seus críticos contumazes? Por uma questão apenas: seu partido não deveria lutar pelo povão e sim buscar respaldo na emergente classe C, aqueles que desenvolveram um senso crítico acima da média e deram início não a uma vida pautada pela cidadania e sim pelo consumo.

Façamos um exercício mental deixando um pouco ao largo a questão político-partidária e trazendo à frente a questão da imprensa. E se verdades antes apenas pressentidas passassem a ser declaradas com todas as vogais (e consoantes) por quem detivesse autoridade, por quem – como dizem os que estudam análise de conteúdo – exercesse autoridade no lugar da fala? Sem muito esforço, após ter passado os últimos anos analisando as idas e vindas da grande mídia e seu real papel como mediadora da informação junto à sociedade brasileira, logo percebi que ao menos umas doze afirmações teriam o poder de desarrumar, com igual contundência, o tabuleiro em que se espalham as peças da nossa vistosa imprensa.

Dia, mês, ano

1. A imprensa deveria deixar de informar a opinião pública e trabalhar apenas para formar ‘a sua’ opinião pública;

2. A imprensa deveria deixar de buscar o interesse dos leitores em geral e escrever apenas para os empresários, os anunciantes atuais e também os potenciais e para a classe de jornalistas que entende ser formadora de opinião;

3. A imprensa deveria transformar em escândalos reais todo e qualquer indício de corrupção que viceje no entorno da presidenta Dilma Rousseff;

4. A imprensa deveria aproveitar uma reunião de sua Associação Nacional de Jornais e aprovar a criação de um Partido da Imprensa Brasileira, tendo como missão maior manter no poder por pelo menos 30 anos governos inteiramente dóceis aos seus interesse financeiros e comerciais;

5. A imprensa deveria aparelhar a sociedade brasileira com novos avatares: o MST da Imprensa, a CUT da Imprensa, a UNE da Imprensa, os Blogues Amarrotados da Imprensa, as ONGs da Imprensa, a Bancada Ruralista da Imprensa, a Bancada da Bala da Imprensa e assim por diante;

6. A imprensa deveria pressionar o governo a presentear cada beneficiário potencial da transposição de águas do rio São Francisco e cada futuro proprietário de moradia do programa Minha Casa, Minha Vida com a assinatura de duas revistas semanais – Veja e Época – e dois jornais de circulação nacional impressos em São Paulo e no Rio de Janeiro;

7. A imprensa deveria continuar pressionando determinados governos estaduais a adquirirem milhares de assinaturas de jornais e revistas para ampla distribuição aos professores de suas redes públicas de educação;

8. A imprensa deveria continuar mobilizando certos atores sociais para influenciar membros do Congresso Nacional a aprovarem uma PEC (Projeto de Emenda Constitucional) dando nova redação ao artigo 225 da Constituição Federal, tornando absolutamente secundário o papel do Estado no processo de concessão de emissoras de rádio e de televisão;

9. A imprensa deveria transformar o Instituto Millenium em Universidade Nacional do Brasil com o objetivo de reformular inteiramente o conteúdo dos cursos de Comunicação Social ora existentes no país, fornecendo-lhes uma nova visão do fazer jornalístico e elencando novas fronteiras do conhecimento neoliberal;

10. A imprensa deveria encampar de forma aberta e inequívoca a defesa intransigente de causa popular que seja conducente à supressão da política de cotas raciais para acesso nas universidades públicas;

11. A imprensa deveria possuir a sua própria Agência Brasileira de Inteligência (Abin) vasculhando, sempre que for o caso, biografias de esquerdistas notórios do Brasil dos anos 1960-1970 para subsidiar alentadas reportagens sobre aqueles que hoje posam de democratas e que em passado recente não passavam de perigosos terroristas;

12. A imprensa deveria continuar orquestrando ações midiáticas de desmerecimento de políticas públicas nos doze meses anteriores aos pleitos presidenciais, começando sempre com a mobilização de ‘formadores de opinião’ com espaço cativo em rádios de amplitude nacional, passando para aqueles que detêm espaço diário na imprensa escrita e desaguando no espaço editorial do principal telejornal do país.

Infelizmente boa parte destes itens são levados à ação mesmo sem que sejam precedidos por qualquer forma de declaração ou anúncio. E é tarefa para muitas mentes, das tão-somente medianas àquelas mais brilhantes, correlacionar cada um desses enunciados com a ilustração do fato do dia, do mês, do ano, conforme a prática de nossa imprensa.

Garanto, leitores, que estou lhes sugerindo um interessante exercício mental. Ao menos para aqueles que consideram suas mentes minimamente… arejadas.

https://www.observatoriodaimprensa.com.br/imprensa-em-questao/apenas-um-exercicio-mental/

20 de abril de 2011

Um jeito especial de ser

Muitos jornalistas gozam de tanta autossuficiência que ao escreverem um texto sentem-se como se estivessem colocando aos olhos do leitor todos os fatos, todas as suas possíveis facetas e até mesmo as interpretações que uma pessoa razoável poderia fazer sobre aquele determinado tema.

Acontece que o leitor nem mesmo imagina como o jornalista chegou àquelas conclusões, como seu raciocínio reteve os fatos, como os ordenou desta forma e não daquela outra e, também, como chegou àquela conclusão e optou por desconsiderar completamente aquela outra. Pior: muitos jornalistas avançam mais, muito mais. Chegam a apresentar os ingredientes da reportagem, orientam o leitor sobre como deveriam ser assimilados e fornecem robustas pistas sobre como a matéria deveria ser digerida.

Ao escrever essas frases, em um quase exercício de imaginação ativa, tenho em mente, como exemplo, a ideologia de Veja, que sem qualquer esforço aparente sempre permeia cada carta recebida dos leitores, cada frase pinçada para ilustrar a semana e cada acesso seu à História como se tudo existisse apenas para referendar suas crenças no neoliberalismo, no livre mercado, ou então para justificar mesmo que superficialmente sua peculiar forma de entender o que é democracia e, mais, o que é liberdade de expressão.

Causas humanitárias

A revista dos Civita não fica em cima do muro quando os assuntos deixam ao largo a objetividade e embarcam nessa imensa floresta que é a subjetividade. O leitor observa que imparcialidade e objetividade simplesmente não existem quando, por exemplo, a revista trata de Cuba e, pior ainda, quando se refere a Fidel Castro ou a Che Guevara.

O país caribenho é sempre referido como o que há de mais trash na política internacional e sua história enquanto país encontra seu ponto final exatamente no primeiro dia de janeiro de 1959. O leitor simplesmente não é informado que Cuba era uma espécie de parque temático dos ricaços norte-americanos, com os mais opulentos cassinos e as mais bem disseminadas redes de prostituição de que se tem notícia naquela região da ‘costa da Flórida’.

O mesmo leitor, se apresentado fosse ao personagem Fulgêncio Batista, ditador igualmente longevo de Cuba e derrubado por Fidel Castro, poderia ter a impressão de que Batista representava naquele momento histórico um presidente legitimamente eleito, profundamente impregnado por ideais libertários que impulsionam a democracia, a cidadania, o Estado de Direito, o primado dos direitos fundamentais da pessoa humana.

Ocorre que não podemos circunscrever apenas Cuba, Fidel e o Che ao olhar especialíssimo e ideologicamente carregado de Veja. Neste olhar são também esquadrinhados os Estados Unidos, George Bush, Barack Obama; a Venezuela e Hugo Chávez; a Bolívia e Evo Morales; o Reino Unido e a Casa de Windsor. A propósito deste último, salta aos olhos a defesa ardorosa que a revista faz da monarquia inglesa e tudo a pretexto de saudar o casamento do segundo na linha da sucessão ao trono inglês, William e a plebéia Kate Middleton.

O alinhamento da revista da Editora Abril com essa monarquia é tal que por pouco a mãe do noivo não é relegada ao anonimato: Diana foi a única integrante da realeza britânica que na segunda metade do século passado conseguiu incendiar a imaginação popular do país – incêndio de carisma e empatia – que transbordava para praticamente todo o resto do mundo. Incêndio causado pela promoção de causas profundamente humanas, como a proibição de minas terrestres, o resgate da cidadania plena para os portadores do vírus HIV e tantas outras, como a proscrição do comércio de roupas e calçados feitos com peles de animais.

Jornalismo cidadão

É verdade que a abertura da longa matéria de capa da revista (edição nº 2214, de 27/4/2011) principia com tons pairando entre o sombrio e o macabro:

‘Morta, dentro de um caixão de teca, ainda assustadoramente bela num longo preto, levando nas mãos um terço presenteado por Madre Teresa de Calcutá, a princesa Diana quase derrubou uma monarquia de mais de 1000 anos.’

Para o leitor mais familiarizado com os trancos e barrancos que a grande imprensa costuma empregar para barrar a livre e independente busca da verdade bem poderia ler outras frases. E seu sentido conservaria ainda o mesmo impacto visual e auditivo:

‘Morto, dentro de um caixão de cristal transparente, ainda assustadoramente sedutor, levando nas mãos uma cópia da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o jornalismo cidadão e plural quase derrubou o monopólio dos meios de comunicação de mais de 500 anos.’

https://www.observatoriodaimprensa.com.br/imprensa-em-questao/um-jeito-especial-de-ser/

26 de abril de 2011

A distância entre imprensa livre e imprensa boa

Existe uma distância razoável entre imprensa livre e imprensa boa. Podemos afirmar que temos no Brasil uma imprensa livre. Veículos de comunicação divulgam o que bem entendem, usam de sua liberdade como bem entendem – do contrário não haveria liberdade –, elevam assuntos de importância secundária para a condição de matéria de primeira página nos jornais, ou com maior minutagem e maior destaque nos telejornais. E fazem, também, o caminho inverso: relegam a um terceiro plano o que teria tudo para ser notícia de primeira, notícia com N maiúsculo.

Ainda assim, não podemos dizer que temos uma boa imprensa pela simples razão de que há uma carga bem pesada de subjetividade em afirmação de tal monta. Boa para quem, cara pálida? Para os veículos de comunicação? Para os governos? Para determinados segmentos da sociedade? Para a sociedade como um todo? Esta última questão esbarra no senso comum do ‘ora, nem Jesus Cristo agradou todo mundo… como a imprensa agradaria a toda a sociedade ou, no mínimo, seria por esta considerada boa?’.

A imprensa é livre, por exemplo, para mudar o foco real do debate sobre liberdade de imprensa e liberdade de expressão. Qualquer ser pensante que se atreva a pedir mais transparência da imprensa, mais debate sobre suas necessárias formas de regulação – e não apenas aquelas abrigadas no conceito genérico da autoregulação – é logo considerado golpista, pessoa que possui um dos hemisférios cerebrais localizados no campo do autoritarismo, do cerceamento à liberdade de expressão. São apenas censores os que não tomam parte das legiões do pensamento único. E, na verdade, isso tem um nome. Chama-se ideologização e nada mais. Por que há muito de ideologia no ataque a qualquer proposta de regulação da mídia. Do contrário, seria um debate muito bem vindo e não o que se deseja lançar sobre a sociedade, ao reputá-lo como um atentado à liberdade de imprensa.

Todos os meios

Sabemos, de antemão, que tipo de imprensa não queremos. Nesse bloco podemos afirmar com grande margem de acerto e correção que será uma imprensa refém do capital pelo capital; uma imprensa travestida de partido político e, portanto, a serviço de determinados projetos de poder; uma imprensa que atua como tribunal de primeira à última instância, acusando, julgando e condenando sem deixar de antes fazer terra arrasada da reputação de seus declarados desafetos, os também chamados ‘bolas da vez’. A imprensa que não desejamos é aquela que é generosa nos ataques e nas acusações e extremamente parcimoniosa no uso do direito de resposta, direito muitas vezes conseguido apenas nos tribunais.

É nesse contexto que julgamos salutar que o governo apresente um anteprojeto de regulação da mídia ainda neste ano. Que as experiências colhidas em governos anteriores sirvam de base para os estudos necessários e que este material seja disponibilizado para conhecimento da sociedade parece ser, desde já, um desafio e tanto. Temos que aproveitar o atual processo de convergência das mídias e o surgimento de novas tecnologias para proceder a uma atualização das regras do setor. Atualização que se faz urgente haja vista que normas brasileiras datam do agora distante ano de 1962, ano em que nem mesmo existiam a TV em cores, as transmissões por satélite e muito menos os meios virtuais – sítios, blogues, redes de relacionamento e tantas outras novidades.

A permanecer o status quo, temos o que temos: terra de ninguém, onde parece ter razão quem tem os meios de difundí-la a todo e a qualquer momento e, ainda mais, por todos os meios à sua disposição. Isto é, à disposição dos grandes conglomerados que produzem as notícias e sabem como despejá-las sobre a sociedade, usando o suporte escrito, radiofônico, televisivo e virtual.

Perspicácia

O importante mesmo é não deixar o debate morrer de inanição. Na luta por uma imprensa de boa qualidade – e esta somente poderá assim ser adjetivada se for fundada no inegociável estatuto de sua liberdade – não devem existir mocinhos e bandidos. Há que se buscar uma imprensa que melhor combine os atributos da liberdade de informar com a responsabilidade de informar, as características de empreendimento econômico-financeiro lucrativo com aquelas de empreendimento que favoreça a identidade nacional e o fortalecimento de nossa ainda incipiente cidadania.

É muito trabalho para pouco debate. Estamos apenas no início. Mas não se ganha batalha sem antes haver sido iniciada. E que tenhamos em mente a perspicaz observação do grande líder indiano Mahatma Gandhi (1869-1948) ao afirmar que ‘a liberdade para ser verdadeira precisa incluir a liberdade de errar.’

https://www.observatoriodaimprensa.com.br/interesse-publico/a-distancia-entre-imprensa-livre-e-imprensa-boa/

10 demaio de 2011

O porquê da seletividade

Leigos costumam achar que jornalismo é profissão sem rotina. Ledo engano. Todo ano tem Carnaval, Campeonato Brasileiro, enchentes em São Paulo e em cidades do Nordeste; a cada dois, eleições e bienais; de dois em dois ou Copa do Mundo ou Olimpíada; todos os dias, fofocas políticas e denúncias de corrupção. As pautas estão sempre pré-montadas à espera de repórter que lhe acentue os contornos e que tenha disposição para cobri-las com imagens candentes, com frases bombásticas, com depoimentos indignados de cidadãos.

E na falta disso tudo temos sempre de plantão articulistas indignados com o excesso de ação do governo ou, então, com a inação deste. É este o tipo de jornalismo que temos. Cabe aqui a pergunta do plantonista, do observador assíduo da imprensa: mas será este o tipo de jornalismo que gostaríamos de ter?

Perguntas sem respostas

A função do quarto poder é, sem dúvida, controlar e criticar os outros poderes tradicionais, e só pode fazê-lo em país em que vigore o estado de direito e a liberdade de expressão plena, isto porque sua crítica não tem conteúdo repressivo. Portanto, o Brasil atende a esses requisitos. O que não falta é liberdade para opinar e, no caso de se possuir algum veículo de comunicação, a liberdade inclui o direito de alçar à condição de notícia o que em condições normais de temperatura e pressão não passariam de meras suposições.

É corrente a percepção que os meios de comunicação podem influenciar a vida política do país por meio da criação de opinião. Cria-se, então, a opinião e busca-se logo em seguida quem a assine e se disponha a defendê-la publicamente. Umberto Eco foi feliz quando afirmou que os poderes tradicionais não podem controlar os meios de comunicação a não ser através deles mesmos, pois de outra maneira qualquer intervenção sua se converteria em sanção de natureza executiva, legislativa ou judiciária, algo que só pode ocorrer se os meios gerarem situações de desequilíbrio político e institucional.

Mas, surge outra questão – para muitos considerada impertinente! – sobre as reais possibilidades de existir um controle de um meio sobre o outro quando todos estão tão interligados pela preservação de sua própria influência e poderio ostensivo. A idéia monopolista veta este curso de ação e a imprensa se vê isolada, imune a qualquer marco regulatório, uma vez que o dispositivo constitucional não foi regulamentado e que qualquer tentativa nesse sentido terá ampla possibilidade de ser solapada por interesses tacanhos, quando não apenas escusos.

Com o objetivo de movimentar um pouco o noticiário é de se esperar que alguns veículos de comunicação, observando o impressionante estoque de tintas de escândalo armazenadas em suas redações cada vez mais virtuais e menos físicas, sintam-se tentados a cavar uma história em busca de indícios de corrupção. Não apenas de corrupção, mas de grossa corrupção.

Foi o que ocorreu nos últimos dias com as investigações do jornal Folha de S.Paulo sobre o enriquecimento do ministro-chefe da casa Civil Antonio Palocci: seu patrimônio teria aumentado em 20 vezes nos últimos anos. Há que se perguntar o porquê da seletividade: por que apenas Palocci teve esquadrinhada a evolução de seu patrimônio? Não seria interessante levar à mesma alça de tiro duas outras personalidades públicas, por exemplo, um grão-oposicionista e alguma vistosa autoridade do Poder Judiciário?

Obviamente esse é o tipo de pergunta que se formula com absoluta certeza de que não é para valer porque jamais será respondida. Obviamente existem interesses envolvidos, dentre os quais aqueles que se comprazem em ver sombras de suspeição pairando por sobre a Casa Civil do governo Dilma Rousseff.

Defesa vigorosa

É bem difícil para a grande imprensa assistir impávida ao autodesmoronamento da oposição no país, uma oposição tratada nos últimos oito anos a pão de ló, recebendo amplo noticiário para qualquer de suas teses, quer estivessem bem fincadas na realidade quer não. A experiência manda que tenhamos sempre um pé atrás quando, assim do nada ou do ‘quase nada’, surge denúncia de enriquecimento ilícito envolvendo um figurão da República. Por trás da ‘história’ pode existir lista em ordem alfabética de interesses a atender, de beneficiários a contemplar, ainda mais quando o procedimento padrão de investigação parece tão exato e preciso quanto a previsão da ocorrência concomitante de terremotos e de imensas ondas a varrer do mapa cidades e usinas nucleares.

Uma pista àqueles que têm um pendor por acompanhar as idas e vindas da imprensa brasileira é observar a forma como se dá a repercussão: que colunistas impedem que o tema morra por inanição ou por completa ausência de novos fatos; que personagens públicos são chamados a opinar; em que sequência midiática ocorre a repercussão propriamente dita. E também que assuntos que pareciam mortos e enterrados voltam como toque de mágica à superfície dos acontecimentos para abastecer quadros pretensamente explicativos e que levam o prosaico título ‘para entender o caso’. Na pior das hipóteses, é já recorrente o expediente de oferecer bandeiras a quem, na falta delas e na falta de votação expressiva advinda das urnas, precisa de um generoso tempo de sobrevida.

Acompanhemos os desdobramentos. Nestes, encontraremos o vigor com que a imprensa defende de qualquer forma de controle constitucional e democrático a sua liberdade de expressão e de imprensa, de impressão e de pressão.

https://www.observatoriodaimprensa.com.br/armazem-literario/o-porque-da-seletividade/

18 demaio de 2011

O primado da superficialidade

Faz parte do ideal iluminista a compreensão de que a imprensa serve, acima de tudo, para prestar um serviço público e este não é outro que o de dizer a verdade à população. Atuando assim, a imprensa favorece a construção de uma consciência crítica da realidade. Até aí, tudo bem. O problema é que este entendimento vem, há muito, sendo desafiado pelo concepção capitalista de que a notícia é um produto de consumo como outro qualquer.

E se é produto de consumo é natural que obedeça a lógica das fases de produção, linha de montagem etc. O mercado, bem o sabemos, obedece a leis, regulamentos, normas. E é exigente: quer tudo e a tempo. É aqui que mora o perigo, pois vivemos sob o signo da velocidade. Tudo precisa ser feito de imediato e mesmo a notícia necessita ser atualizada a cada instante, algo concebível no mundo virtual. Mas não é de hoje que estamos às voltas com notícias mal-apuradas, notícias que não preenchem requisitos mínimos de qualidade e que – passou a ser corriqueiro – parecem inteiramente divorciadas da verdade: na falta atualizações, estas passam a ser inventadas.

Lições de descompromisso

A tentação de passar ao largo de qualquer forma de aprofundamento, não importa quão interessante e convidativo seja o assunto, parece ser a regra geral. Por exemplo, li esta notícia em jornal de grande circulação nacional:

“A saga de Harry Potter é uma as mais lucrativas da história. Os sete livros venderam mais de 400 milhões de exemplares em 69 línguas e os sete filmes lançados até o momento arrecadaram mais 6,6 bilhões de dólares em todo o mundo.”

Nessas quarenta e três palavras entre aspas temos boa quantidade de informação. Mas o fato é que a notícia fica apenas nesse enunciado de “encher os olhos” e nada, absolutamente nada, de análise. Era de se esperar que se convidasse ao menos algum especialista em literatura para refletir sobre tão impressionantes números relacionados com as aventuras de Harry Potter, o pequeno órfão aprendiz de bruxo e mina de ouro da escritora britânica J. K. Rowling. E também alguns especialistas no mercado editorial para analisar os pilares comerciais que sustentam o fenômeno Harry Potter. Professores do ensino fundamental também poderiam compartilhar percepções sobre Harry Potter e a criação do hábito de leitura. Mas nada disso é feito porque o império da superficialidade parece se impor com imbatível superioridade.

Uma coisa é entender que a objetividade não existe e outra, bem diferente, é deixar de buscá-la. E a busca da objetividade ajuda a revestir de credibilidade o texto jornalístico.

Também passou a ser comum encontrar, principalmente no jornalismo virtual, notícias que nem mereciam ser notícias devido à sua completa falta de importância relevância. É quando encontramos em um dos principais portais noticiosos da internet no Brasil chamadas como:

** “Sabia que as depiladoras brasileiras mudaram a vida de Gwyneth Poltrow?”

** “Princesa Anne multada por ataque de cão”

A pergunta que o leitor deve fazer é: “E eu com isso?” Mas esses dois pequenos casos, apenas a título de ilustração, demonstram o descompromisso com o jornalismo e também uma certa queda pelo bizarro, pelo exótico, pelo raro. Termina que não chegam a ser nem uma coisa nem outra, mas apenas e tão somente um certo tipo de miopia… jornalística.

Luta hipotética

O jornalismo instantâneo é geralmente recheado por temas desimportantes, quando não por frivolidades em pencas. É o artificialismo em transe. Neste contexto, não deveria causar espanto ver o nível cada vez mais raso que o jornalismo vem assumindo em sua roupagem virtual. Não tardará a que a tradição do bom jornalismo (fundamentado, pesquisado) ceda lugar ao mau jornalismo (instantâneo, frívolo): a preocupação maior será com a manchete e não com o conteúdo da notícia.

Como é mais comum que doença contagie e não saúde, vemos proliferar apenas os defeitos de um tipo incompleto de jornalismo:

** As fontes não precisam gozar de boa reputação;

** As imagens deixam de representar unicamente a realidade, o factual, e nestes tempos de farta manipulação digital já são bem assimiladas e aceitas intervenções visando um “melhor enquadramento”;

** Ao momento ainda são repudiados aqueles programas de computador usados para melhorar a aparência dos personagens da notícia;

** Na busca de informações para uma reportagem parece já ser admissível o uso de disfarces ou meios similares para ocultar a profissão de jornalista;

** Ainda não sabemos se existe algum valor aceitável para presentes, por parte de suas fontes, oferecidos a jornalista;

Como vemos, há uma enormidade de temas a serem abordados com maior profundidade e que dizem respeito à qualidade do jornalismo que podemos oferecer à sociedade, mas a tendência atual continua sendo a de apostar todas as fichas na luta contra um hipotético cerceamento da liberdade de expressão por parte do Estado. É como se decidíssemos lutar pelo imaginário – que nos rende mais frutos – em vez de lutar pelo real, que nos causa apenas aborrecimentos.

Brinquemos, então, de fazer jornalismo.

https://www.observatoriodaimprensa.com.br/jornal-de-debates/o-primado-da-superficialidade/

21 de junho de 2011

A pauta da cremação

A imprensa, a mesma imprensa que negou em vida ao ex-presidente Itamar Franco a repercussão de qualquer declaração de autoridades, fosse do governo ou da oposição, atestando como sua a paternidade do Plano Real, não esperou nem mesmo que o corpo do ilustre morto baixasse no forno crematório de Contagem (MG) para incluir em todas as frases de consternação que sua morte ensejou a emblemática afirmação de que ele, Itamar Franco, foi o verdadeiro pai do Plano Real.

Começando pelos ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva, José Sarney e Fernando Collor, e passando também pelos governadores Antonio Anastásia (MG), Sérgio Cabral (RJ) e Geraldo Alckmin (SP), todos pareciam unânimes, como se fizessem parte de um vigoroso coral imaginário, ao lhe conceder em morte aquela mesma paternidade que lhe fora (so)negada em vida. E todos os que privaram da intimidade do ex-presidente sabem quão agastado o político mineiro ficava sempre que alcunhavam o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso de “Pai do Real”.

Se por um lado a grande imprensa foi célere em “dar a Itamar o que era de Itamar”, foi novamente relapsa ao não conseguir qualquer declaração nesse sentido do ex-presidente Cardoso. E relapsa duplamente ao não repercutir a não-declaração daquele que se elegeu duas vezes presidente no Brasil (1994 e 1998) sendo vendido como pai, criador e fiador do Plano de Estabilização Econômica conhecido na linguagem das ruas como Plano Real.

Uma época tão marcada pela vaidade, pelo exibicionismo e pela busca do sucesso pessoal e profissional a todo custo, causa estranheza ver que esses sinais ostensivos de uma ordem mundial decadente, com prazo de validade há muito vencida, não abarcam mais os mundos misteriosos do além, aqueles que se separam deste pela tênue cortina da morte.

Lápides e musgos

Esses pensamentos vieram à mente tão logo a imprensa passou a divulgar que o ex-presidente Itamar Franco, falecido no sábado (2/7), em São Paulo, seria velado no dia 3 em Juiz Fora e cremado em Contagem, ambas nas Minas Gerais. Ainda neste ano de 2011, afamília do ex-vice-presidente da República José Alencar Gomes da Silva – morto em São Paulo em 29 de março –, optou por sua cremação, em cerimônia realizada no dia 31 de março no Cemitério Parque Renascer, em Contagem.

Comecei então a implicar mentalmente com a idéia de cremação. Que idéia ou opção de destino final tão poucas vezes detalhada na imprensa! Nunca deparei com matérias sobre o assunto nos jornais. As revistas tampouco concedem algum destaque ao tema. Televisão? Ainda não sei de qualquer documentário sobre cremação de corpos em qualquer canal da tevê aberta. Nem tenho conhecimento de algum dos entrevistados do Programa do Jô deitando falação sobre o assunto, seja porque dele entende, seja porque deseja ser cremado tão logo pare de bater o coração. Nos festivais anuais de futilidades e frivolidades que alimentam a produção das onze edições do Big Brother Brasil também não sei se as antenas do Grande Irmão captaram alguma conversa dos heróis do Pedro Bial sobre o tema quase-sem-palpitação.

Como dizia meu avô Venâncio Zacarias, velho líder político de sua modorrenta cidade de Macau, no Rio Grande do Norte, “meu filho, na vida tudo muda; e a única cousa que não muda é a própria mudança”. Tinha razão o avô. E nem mesmo os cemitérios, os locais de descanso eterno, conseguiram passar incólumes à idéia de mudança. Mas nem sempre foi assim. Em todos os tempos os povos sentiram a necessidade quase imperativa de marcar o lugar de repouso sagrado de seus benfeitores, de seus estadistas e governantes e também de suas celebridades. E em tais locais eram construídas desde belas capelas até monumentos graníticos encimados por esculturas da vasta mitologia sacra, com imagens de anjos em diversas situações, efígies de santos e padroeiros protetores, até cruzes estilizadas e esmerado cuidado na escolha das palavras a serem afixadas nas lápides e nos túmulos, geralmente excertos das Sagradas Escrituras ou frase de efeito no mundo real, como a repercutir seus efeitos no mundo dos mistérios.

Chega a causar perplexidade a existência de um novo gênero de turismo: o necroturismo. É aquele procurado por pessoas que viajam pelo mundo a visitar cemitérios. E empreendem as viagens com o intuito de render sua homenagem a pessoas famosas, que marcaram sua maneira de ver o mundo, e dentre estes encontram-se os grandes escritores, poetas, filósofos e os famosos do show business – cantores, artistas do cinema. Viajavam também motivados pela idéia de apreciar – sim, apreciar – a arquitetura dos túmulos. Há aqueles que desejam conhecer algum aspecto histórico relacionado à morte de determinada personalidade, coisa muito comum a estudiosos e também a admiradores em geral.

O necroturismo, como os demais tipos de turismo, tem também seus destinos imperdíveis. Père Lachaise, em Paris, é o cemitério mais famoso da França. Nos seus 500 mil metros quadrados estão túmulos famosos como os de Honoré de Balzac, Marcel Proust, Chopin, Oscar Wilde, Edith Piaf, Richard Wright e o do emblemático Jim Morrison, vocalista da legendária banda de rock The Doors. Tem sido destacado que este cemitério francês se tornou um marco desde o século 19 para a construção dos cemitérios modernos, representando a transição entre o modelo de cemitério urbano, com jardins, para os cemitérios rurais.

O Cemitério Nacional de Arlington (Virgínia, EUA) é o mais conhecido e tradicional cemitério militar norte americano. Fica localizado na área em frente a Washington D.C, do outro lado do rio Potomac, perto dos prédios do Pentágono, cortando a capital americana. A extensão da área é de 4.000 metros quadrados onde estão enterradas mais de 360 mil pessoas, em geral veteranos de cada uma das guerras travadas pelo país, desde a revolução americana até a atual Guerra do Iraque. Entre os túmulos está o do ex-presidente John F. Kennedy.

E não se pode deixar de visitar o de San Michele (Itália), o principal cemitério de Veneza. San Michele está situado numa ilha a poucos minutos da cidade pela via Vaparetto, e é apelidado de “ilha dos mortos”. Pode soar repetitivo, mas deve-se esclarecer que é um lugar procurado por quem está atrás de reclusão, paz e tranquilidade, sobretudo quando a Praça de São Marcos recebe muitos turistas. Entre as lápides de pedras e os altos ciprestes estão os túmulos de Ezra Pound, Igor Stravinsky e Joseph Brodsky.

Aos turistas mais abonados tem sido recomendado visitas aos cemitérios da Recoleta (Buenos Aires), onde está enterrada Evita Perón e tem sua topografia bem delineada com ruas e até praças; e ao Old Jewish(Praga, República Tcheca), muito antigo, datando do século 15. Conta com cerca de 12 mil sepulturas, é o de maior número de defuntos por área quadrada. Sem espaço para enterrar seus mortos, os judeus se viram obrigados a sobrepor lápides umas às outras. Com os anos, acumularam-se doze camadas, e as lápides mais à superfície estão cobertas de musgos. Entre elas está a de Franz Kafka.

Palavras do poeta

E no Brasil? Temos dois cemitérios famosos. O da Consolação, em São Paulo e o de São João Batista, no Rio de Janeiro. O da Consolação, inaugurado em 1858, é o mais antigo dos 22 em funcionamento na capital paulista. É a morada eterna de muitas figuras célebres da história do país. Em seus primórdios abrigava democraticamente gente de todas as cores e classes, do patrão ao escravo, como a recordar que ficarão todos iguais no final da vida; mas com a consolidação do sistema capitalista, ainda no início do século 20, o cemitério passou a ser objeto de desejo dos mais ricos, passando a ser visto como símbolo de prestígio, uma espécie de ostentação e última vaidade desses que daqui partiram para uma viagem sem fim.

A arte-escultura, também conhecida como arte tumular, tem aqui seu franco desenvolvimento. Ali descansam os ossos de muitas personalidades importantes, como a tríade modernista Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade e Mário de Andrade. Os presidentes Campos Sales e Washington Luís. Fazendo jus à pujança de São Paulo, o destaque fica para o exuberante mausoléu da família Matarazzo, considerado o maior da América Latina, ocupando uma área de 150 metros quadrados e perfazendo 25 metros desde o subsolo ao topo.

Dentre os inquilinos eternos do São João Batista encontram-se os escritores e jornalistas Carlos Drummond de Andrade, Carlos Lacerda, Octávio Malta, Mário Filho, Otto Lara Resende, Paulo Francis, Fernando Sabino; os artistas Carmen Miranda, Cândido Portinari, Baden Powell, Leila Diniz, Cazuza. Conta com centenas de ricos mausoléus e artísticas sepulturas. No centro, há uma capela dedicada a São João Batista. É também a necrópole que mais abriga tumbas de chefes de estado no Brasil, com pelo menos nove ex-presidentes da República, diversos ministros do Império e até um ex-chefe de Estado estrangeiro (Marcelo Caetano, ex-presidente do Conselho de Ministros de Portugal).

Deitado à sombra de uma palmeira, como profetizou nos versos de “Sabiá”, figura a sepultura de Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim (1927-1994), ou simplesmente Tom Jobim. Sobre o mármore, as palavras do poeta: “'Longa é a arte, tão breve é a vida”. Do outro lado da ruela, réplicas da Pietá, São Miguel Arcanjo e São Geraldo atraem o olhar.

Existência questionada

Há que se pautar na imprensa, com maior regularidade, o tema da cremação. Este é ainda um serviço envolto em mistérios. Alguém saberia informar qual o preço médio para a cremação de um corpo? Quantos fornos crematórios existem no Brasil? E quanto a implicações jurídicas, será que não foi ainda pensado que o corpo humano é um documento, seja vivo ou morto? Quantos casos de erro médico, ou mesmo de homicídio, são esclarecido muitas vezes após a exumação de sepulturas após decorrido anos e décadas?

Agora mesmo, em Santiago do Chile, a família autorizou a exumação do corpo do ex-presidente chileno Salvador Allende, morto em 11 de setembro de 1973, naquele que foi certamente o mais famoso 11 de setembro da América Latina. O objetivo? Esclarecer de uma vez por todas se o líder chileno cometeu suicídio ou se foi assassinado pelas tropas do general golpista Augusto Pinochet. E, caro leitor, se seu corpo não mais existisse, tivesse sido cremado?

Na seara política brasileira, vira e mexe uma romaria de brasileiros acorre à cidade gaúcha de São Borja para visitar o túmulo do presidente Getúlio Vargas. No local tem sido comum a leitura de manifestos de partidos políticos e outras solenidades do tipo. Uma coisa é certa, a única prova irrefutável de que um dia existiu alguém, não importa se há dezenas ou há centenas de anos, é o estabelecimento indubitável de seu lugar de descanso eterno. Não à toa que arqueólogos ainda buscam vestígios de algum sepulcro do fundador do Cristianismo e, vez por outra, toca algum alarme falso sobre o assunto. Alarmes que logo incendeiam a imaginação não apenas de teólogos e de arqueólogos como também de cristãos em geral.

Outra coisa é certa: nos anos e séculos vindouros, ou enquanto este planeta existir, as futuras gerações poderão simplesmente questionar a existência física de tantas personalidades que, em seu tempo, tomaram para si a tarefa de escrever parte da nossa História.

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5 de julho de 2011

O tribunal midiático

Espanto, perplexidade, surpresa. Alguém em sã consciência poderia dizer que teve uma destas reações ao deparar com a capa da revista Veja (nº 2232, de 31/8/2011)? Só se for a de um brasileiro residindo em Berlim ou em Nairobi. Veja pode ser acusada de práticas jornalísticas pouco usuais, politicamente destemperada, editorialmente desequilibrada, mas não pode ser acusada de incoerência. No caso atual, a eterna “bola da vez” é o combativo militante petista – e sempre combatido pela revista – José Dirceu. E quem apostar que está difícil nesses tempos de turbulência na economia internacional “emplacar” um escândalo com fortes cores nacionais apostará corretamente, pois nesses casos a revista da Abril lança mão de seu tema-de-escândalo-habitual: Zé Dirceu.

Uma rápida busca nos arquivos digitalizados da própria revista mostra nada menos que 49.587 resultados quando preenchemos o campo de pesquisa as palavras “José Dirceu”. E se formos pesquisar por edição, teremos que bisbilhotar – algo que a revista faz com maestria – nada menos do que em 91. Este é o número de vezes em que, no período 2002-2011, José Dirceu irá figurar na capa da revista, seja na manchete ou em chamadas secundárias.

Em uma breve retrospectiva vemos o vírus insidioso da intriga em seu nascedouro, como a farejar a proximidade inevitável do poder. E assim nasce a primeira chamada lateral de capa (25/9/2002): “José Dirceu: O homem que faz a cabeça de Lula”. E perfil mostra o guerrilheiro que treina em Cuba, participa ativamente da luta contra a ditadura brasileira e, foragido, se submete a uma cirurgia plástica no rosto. A segunda “aparição”, ocorre na edição de 6/11/2002, quando Dirceu divide a capa-palco com dois outros ministros do primeiro governo Lula – Antonio Palocci e Luiz Gushiken. Os três vestidos a caráter para ilustrar a chamada que guarda certa nostalgia dos tempos do Brasil Império. Diz a manchete: “A cúpula da nova corte – Os três mosqueteiros com quem é preciso falar para ser ouvido no governo Lula”. O texto tem um único objetivo: mostrar quem tem poder real no novo governo e classificar as demais autoridades como meros figurantes, resultado de acertos de promessas a partidos políticos ao longo da campanha presidencial.

Escolhidos a dedo

Chega o ano de 2004 e Veja mostra a que veio, elegendo José Dirceu como representante-mor do “mal” que se apossa do corpo do Brasil, quase como uma entidade sobrenatural, não obstante a chamada lateral de sua capa de 3/3/2004 parecesse vender a imagem de um ex-ministro-todo-poderoso em franca desgraça: “José Dirceu: O ministro continua encolhendo”.

Para chegar à tese do encolhimento do detentor de poder político, a revista vinha desde 2003 lançando farpas e lanças, como par dividir de forma irremediável aqueles mesmos três que antes saudara como sucedâneos de Athos, Portus e Aramis. É o período em que escapa da artilharia pesada apenas o D’Artagnan redivivo em Luiz Inácio Lula da Silva. E escapa porque consegue se manter em crescente popularidade junto aos milhões de súditos, para usar a metáfora acolhida pela revista. Logo na semana seguinte a edição de Veja (10/3/2004) traz seu rosto tomando toda a capa e os dizeres simulando desabafo do retratado: “Dirceu: Não vou sair do governo”.

São muitas matérias, geralmente citando fontes em off, frases recolhidas fora do contexto em que foram ditas e reajuntadas a contextos mais atuais, mas tendo um único objetivo: manter com Dirceu a aura de malévolo, gângster, traficante de influência nato e outros epítetos nada lisonjeiros a alguém que tem claro protagonismo político e partidário, além de sagaz operador do governo que ajudou a eleger ao criar estratégias vitoriosas e reconhecidas mesmo por seus mais acerbos adversários. Esta abordagem que cada vez mais se enraíza no modo-Veja-de-fazer-jornalismo deságua em outra capa com o rosto do ex-ministro e a manchete premonitória e sombria (3/8/2005): “O Risco Dirceu”.

De 2005 a 2007, José Dirceu estará sempre relacionado com o que a grande imprensa optou por chamar de “Mensalão do PT”. Matérias e quase-reportagens no período esposarão teses fatalistas tendo como ponto de convergência o impeachment do presidente Lula, a desmoralização completa dos partidos de esquerda, em particular do Partido dos Trabalhadores. As “páginas amarelas”, aqueles que abrem as edições de Veja com “grandes entrevistas”, serão literalmente amareladas com entrevistados que desenvolvam qualquer tese, por mais estúpida que seja, para desmerecer ou se contrapor frontalmente a quaisquer das políticas públicas mais vistosas do governo Lula: o Bolsa Família, a transposição de águas do Rio São Francisco, o ProUni, a política de ações afirmativas (cotas para negros, índios nas universidades). Entrevistados mostrarão por a+b que o Bolsa Família é na realidade uma Bolsa-Esmola, que o programa tem apenas apelo eleitoral, é insustentável e só tem porta de entrada.

Lembram dessas histórias? Entrevistados escolhidos a dedo para prestar sua devoção incondicional aos cânones do neoliberalismo, ao papel mínimo do Estado, ao sacrossanto direito a extensões de terras para corar de inveja os faraós do antigo Egito. O acesso de afrodescendentes às universidades através de cotas receberá a cada semana um novo petardo onde tais luminares encontrarão apenas mazelas sociais no Brasil e nunca mazelas raciais.

Imprensa criminosa

Na edição de 19/9/2007 a chamada lateral na capa é um primor de síntese da atividade judiciária: “Caso MSI/Corinthians: A Polícia Federal descobre as pegadas de José Dirceu”. A criminalização de José Dirceu parece fazer parte do manual de redação da revista. É quando Veja levanta suspeitas, investiga, acusa, julga, condena, acompanha o cumprimento da pena e veta qualquer direito ao contraditório. O Tribunal Midiático parece ter mais poder destruidor que Tribunal regular, instância judiciária em uma sociedade democrática.

O Tribunal Midiático recebe o apoio não falado, não escrito, não reverberado, não consignado de seus pares, igualmente juízes e donos do mesmo poder de noticiar, informar, afirmar, acusar, julgar, condenar. Para integrar tal Corte basta ter jornal impresso com alta tiragem e ampla circulação diária, ter concessão pública de exploração de canal de tevê aberta e emissora de rádio com cobertura nacional em AM e FM, além de vistosos portais na internet e a propriedade de alguns canais de tevê a cabo.

Como um contrato de gaveta, sem legitimidade ou valor legal perante o Poder Público, os que integram o Tribunal Midiático agem à la James Bond, aquele velho personagem vivido por Sean Connery, cujo poder estava inscrito em sua identidade: “Licença para matar”. A verdade é que a maior concessão que um capo da mídia pode fazer em relação a um desafeto é lhe conceder, eventualmente, espaço para escrever algo, colocar de pé uma ideia. Mas nunca para se contrapor de maneira frontal e explícita contra o veículo de comunicação que assaque contra sua honra, invada sua privacidade, utilize de banditismo para fazer circular a “sua” verdade sobre um determinado assunto. Qualquer assunto.

Chega agosto, mês de desgosto para alguns, mês de tragédias nacionais na política brasileira (Getúlio Vargas, Jânio Quadros etc). E a revista Veja parece continuar impressionada com a saga de Mario Puzo, com o seu Don Corleone, de O Poderoso Chefão. A capa da edição de 31/8/2011 traz o rosto de José Dirceu, óculos escuros, meio-sorriso mafioso, bem versão Marlon Brando, vestindo o personagem de Puzo. O texto de capa é, muito provavelmente, o mais destoante entre uma chamada de capa e sua matéria interna: “O Poderoso Chefão / O ex-ministro José Dirceu mantém um ‘gabinete’ num hotel de Brasília, onde despacha com graúdos da República e conspira contra o governo da presidente Dilma”.

O que merecia mesmo uma ampla reportagem é a metodologia adotada pela revista para cumprir sua pauta. Repórter se passando por companheiro de quarto de hotel de José Dirceu. Repórter tentando conseguir a chave do apartamento de José Dirceu com a camareira. Imagens citadas/retratadas na revista como se houvessem sido cedidas pela segurança do hotel – aliás, e isso parece inacreditável, o mesmo hotel que lavrou boletim de ocorrência em delegacia de polícia dando conta de hóspede suspeito querendo invadir um quarto. Etc., etc., etc. Os crimes lançados na “reportagem” infelizmente, para a revista, não são tipificados no Código Penal brasileiro: receber visitas em seu quarto de hotel, visitas que tanto podem ser de entregadores de pizza ou comida chinesa, como de parlamentares ou mesmo ministros de Estado.

Não discorro mais sobre o assunto porque Ricardo Kotscho já disse tudo sobre esta última parte (ver “Repórter não é polícia; imprensa não é justiça”. A pulga que tenho na orelha é saber se, por algum acaso, repórteres de Veja estagiaram recentemente no jornal News of the World do realmente mafioso midiático Rupert Murdoch. Caso tenham estagiado, pelo jeito não aprenderam bem as lições que somente uma imprensa criminosa poderia ensinar.

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2 de setembro de 2011

A tecnologia do sonho

Estava conectado. Tinha na mão o iPhone 4. E então escutei William Bonner, no Jornal Nacional (quarta, 5/10), anunciando, em não mais que dez dramáticos segundos, a morte de Steve Jobs. Naquele momento tive a nítida sensação de que uma parte de nosso futuro comum havia sido arrancada de nós.

Ex-hippie, membro daquela geração que nos anos 1960 queria mudar o mundo tendo como palavras de ordem o hoje clássico (e tão datado) “Paz e Amor”, Jobs foi encontrar nos caminhos do budismo as trilhas que levam para dentro, que nos fazem viajar por paisagens muitas vezes insondáveis: identificar o sonho (a meta), percorrer o caminho (a estratégia), alcançar o objetivo (tornar o sonho real, palpável, manuseável).

E foi isso mesmo que Steve Jobs fez: encurtou vertiginosamente a distância entre as tecnologias digitais e o ser humano comum, do estudante ao cientista, do ganhador do Nobel ao recém-alfabetizado, da dona de casa ao mais ousado integrante da banda de rock.

A família “i”

Quantas vezes escrevi sobre os frutos – da sempre carregada – árvore de Steve Jobs? Saudei com entusiasmo de fã e não de acadêmico o surgimento do iPad. Tratei de antever a revolução em andamento que a leitura de livros, jornais e revistas passaria com o iPad. Comparei, sem hesitação, o trabalho de Jobs com aquele realizado por Gutenberg, quando em 1492 imprimiu em traquitana de tipos móveis o primeiro livro tal como o conhecemos ainda hoje. E a imagem robusta e tocante de Gutenberg nos descortinando sua galáxia de tipos me fez instantaneamente reverenciar a consolidação de uma nova galáxia, ainda mais vibrante: a galáxia de bits, inaugurada pela dupla Jobs/Gates.

Exemplo de perseverança, confiança irrestrita no êxito de suas invenções, é notável que no espaço de apenas doze meses a Apple sucumbiu e emergiu comercialmente. Vejamos: em 1983 Jobs lançou o Lisa, o primeiro computador com uma interface gráfica, e foi um retumbante fracasso de vendas. Seu calcanhar de Aquiles: o preço de US$ 9.995. E logo no ano seguinte a Apple anunciou o novo Macintosh, que veio a ser o primeiro computador para uso pessoal (PC) com interface gráfica e mouse. Alcançou sucesso comercial imediato. O preço? US$ 2.500 a unidade.

Jobs esteve sempre preocupado em criar produtos multitarefa.Chamava isso de otimização. Mas, na verdade, ele é que era multitarefa. Nos anos iniciais e turbulentos em que lutava para consolidar sua empresa e tirar do papel suas idéias, quase sempre inovadoras, quase sempre visando um conceito hoje tão festejado como o da sustentabilidade, ele decidiu, em 1986, comprar a empresa de computação gráfica de George Lucas por US$ 10 milhões – e muda seu nome para Pixar. Menos de uma década depois, em 1995, a Pixar é a sensação no mundo da sétima arte: lança seu primeiro longa-metragem, Toy Story, que arrecada mais de US$ 360 milhões.

Preparado para longas guerras de nervos, vendo a tormenta se espalhar por sua companhia, em 1985 Jobs deixa a Apple. E o mundo descobre que o principal ativo da companhia não eram seus produtos, muito menos suas técnicas de gerenciamento e de vendas. Este ativo tinha nome e sobrenome e era Steven Paul Jobs.

Quando a empresa encontrava-se em situação crítica, lutando pela sobrevivência, acossada por concorrentes bem capitalizados e sempre dispostos a uma boa briga, vemos, em 1997, Jobs, ainda à procura de um substituto para o ex-CEO Gilbert Amélio, irromper no palco da Macworld e anunciar que sua arquirrival Microsoft investirá US$150 milhões na Apple. E, de quebra, em um movimento inesperado, informar que ele e Larry Ellison, presidente da Oracle, serão nomeados conselheiros da “nova” Apple. Já em 1998, a Apple lança o iMac, por US$ 1,3 mil, e assim tem início a era dos produtos precedidos do “i” – como o iBook, que surgiu um ano depois. Nesse ano, a empresa volta a ter lucro depois de alguns trimestres no vermelho.

Somente em 2000, após atuar por dois anos e meio como CEO interino, Steve Jobs assume oficialmente o cargo. E lança o sistema operacional Mac OS X.

Força criadora

Não é comum nem usual nos darmos conta dos tempos extraordinários em que vivemos enquanto estes estão atravessando nossas vidas. Os últimos quarenta anos tiveram as impressões digitais de Jobs. Além de dar título ao clássico de Stanley Kubrick 2001, Uma odisséia no espaço, esse ano testemunha uma revolução na música, na arte de ouvir música (pureza do som), no jeito de armazenar e compartilhar música. Foi em 2001 que a Apple lançou o iPod e a engenhoca simpática e minúscula veio substituir de vez e decretar o fim dos walkman dos anos 1980, oferecendo milhares de músicas, devidamente organizadas por título, gênero, compositor e artista.

O iPod é o primeiro tocador de música digital e seu primeiro modelo armazena até mil músicas em MP3. Com esse produto, a Apple se aproxima ainda mais das pessoas comuns. E conseguiu isso seguindo o caminho do preço: US$ 399.

Naquele 2001 a companhia inaugura suas três primeiras lojas nos Estados Unidos e, atualmente, são 300 lojas espalhadas pelos cinco continentes, sempre ícones de arquitetura minimalista e do design funcional. É a beleza nos mínimos detalhes, do atendimento à interação do cliente com o produto, apalpando-o, manuseando-o, colocando-o para funcionar e, sobretudo, passando a vê-lo como extensão de seu corpo, complemento da audição, da visão e do tato.

O início do século 21 viu o terror fazendo desabar as Torres Gêmeas e desfalcando a imagem financeira mais portentosa no horizonte da ilha de Manhattan, em New York. O mundo artístico e as empresas que comercializavam músicas estavam em polvorosa. Era um verdadeiro “voa barata” com a crescente proliferação de meios de se adquirir músicas e outros bens culturais na internet sem despender um centavo sequer a título de direitos autorais. Quanto mais a título de direitos comerciais. É quando, em 2003, Steve Jobs desvela ao mundo a iTunes Music Store, que oferece mais de 200 mil músicas digitais das cinco maiores gravadoras do planeta por US$ 0,99 cada. Com isso calam-se as vozes sombrias sempre a decretar o fim da viabilidade econômica do produto que chamamos música.

Mas, é também o ano em que Jobs é diagnosticado com um raro câncer no pâncreas e a Apple decide não revelar a informação a investidores, após consultar seu departamento jurídico. Mas foi por pouco tempo. Em 2004, aos 49 anos, ele mesmo revela pela primeira vez o seu câncer, afirmando que teve sucesso em uma cirurgia para remover o tumor e não precisaria de quimioterapia ou radiação. Na sua ausência, o COO Tim Cook comanda a Apple. Transparente, sóbrio, Jobs, em 2005, faz seu discurso aos graduandos da Universidade Stanford e não titubeia em afirmar que os médicos “me deram apenas seis meses de vida”.

Uma trajetória, por todos os motivos, singular. Em 2006, Jobs vende a empresa Pixar para a Walt Disney. Embolsa US$ 8,6 bilhões, tornando-se membro do conselho e o maior acionista individual da gigante do entretenimento. Depois, a criatividade jorra como se fosse uma fonte. Tudo o que ele toca vira sucesso. Espalha-se pelo mundo a applemania e já nos primeiros meses de 2007 a Apple apresenta à massa de seus milhões de admiradores-clientes o iPhone, aquele telefone celular dotado de “esperteza”. O smartphone, no vocábulo inglês. E então vemos as ações da empresa atingir um ápice histórico com o otimismo pelas vendas do celular contra aparelhos rivais da Palm e Research in Motion, o também celebrado Blackberry.

Em 2008 é lançado o iPhone 3G, durante uma conferência para desenvolvedores. Jobs aparece mais magro, debilitado, frágil. E, pela primeira vez, uma gigante dos negócios tem sua vida diretamente associada à vida de seu criador. A Apple culpa uma disfunção hormonal e, em julho de 2008, responde às questões de acionistas afirmando que não tem planos de sucessão e que a saúde de Jobs é uma questão pessoal. O mercado não engole esta última parte: a queda das ações no dia seguinte chega a 12%.

Em 2009, a doença continua apresentando sua fatura. Jobs diz que tem um desequilíbrio hormonal, motivo de sua impressionante perda de peso. “O tratamento para esse problema nutricional é relativamente simples”, disse por meio de um comunicado. Combativo, otimista em meio à adversidade que se aproxima, poucos dias depois se afasta do dia a dia da empresa e nomeia Tim Cook como o líder da Apple pelos seis meses seguintes. Sua explicação é de uma sinceridade chocante: “Meus problemas de saúde são mais complexos do que imaginava”. Em junho, passa por um exitoso transplante de fígado e volta ao trabalho. Mas a usina de idéias, a força criadora, a luta contra o tempo, esse recurso cada vez mais (des)humano de se lidar, ainda tem energia suficiente para dar à luz, em 2010, ao iPad. A Apple vende 7,3 milhões de tablets no primeiro trimestre.

Gosto de maçã

Neste 2011, ao dar início a uma nova licença médica, Jobs enviou o seguinte e-mail aos seus empregados: “Eu amo muito a Apple e espero estar de volta assim que possível”. Cook novamente assumiu o dia a dia da empresa e, em março último, Jobs reapareceu em público para lançar a nova versão do iPad. Era o princípio do fim. Em agosto de 2011, Steve Jobs renunciou à presidência da Apple e assumiu a presidência de seu conselho de administração. Foi o mago dos negócios: em 1980, a Apple abre capital com a ação cotada em US$ 22; atualmente, o papel vale US$ 378,25.

Na quarta-feira, 5 de outubro de 2011, rodeado de familiares, Steve Jobs nos deixou. Fica na história como o Infante Dom Henrique (1394-1460), popularmente conhecido como Infante de Sagres ou O Navegador,certamente a mais importante figura do início da era dos descobrimentos. O Navegador português seguiu sua intuição que sinalizava que a Terra não poderia ser quadrada e, partindo daí, desvendou novos mundos. Depois dele vieram Américo Vespúcio, Cristóvão Colombo e tantos outros.

Steve Jobs seguiu sua intuição e colocou a tecnologia a serviço da humanidade, alargando para ainda mais longe as fronteiras do conhecimento humano. O fundador da Apple será sempre lembrado como um dos responsáveis por produtos que revolucionaram não só a indústria da tecnologia, mas também o mercado de entretenimento.Deu início a um caminho sem volta. E com gosto de maçã. Maçã que toca música, lê livros, faz cálculos, organiza nossas memórias e faz-nos… vibrar e sonhar.

Descanse em paz, Steve.

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6 de outubro de 2011

Cobertura solidária. E cínica

Quando a divulgação de que um ex-presidente da República sofre de um câncer passa a ocupar desmesurado espaço na imprensa escrita, radiofônica, televisiva e virtual (web) é robusto sinal de que algo vai mal – muito mal – na nossa conhecida atividade jornalística. E é isso o que está acontecendo desde que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva informou à população que sofria de um câncer na laringe, na sexta-feira (28/10).

Triste espetáculo encenado por ícones do jornalismo: jornalistas há muito consagrados fingindo solidariedade ao presidente enfermo e usando a tal “solidariedade” como escada para desancar seu ideário político, desferindo pesado bombardeio opinativo contra suas festejadas conquistas quando à frente do governo; analistas políticos, ou que assim se julgam, usando os meios a seu dispor para, a título de condenação, endossar uma minoria rancorosa que, principalmente no mundo virtual, vocifera a estapafúrdia sugestão de que o ex-presidente trate de seu câncer na rede pública de saúde do país, o SUS.

A situação é de um cinismo tão exuberante que até os angelicais seres barrocos que prestam contínuos louvores à divindade em centenas de igrejas que remontam aos tempos do Brasil Colônia e do Brasil Império logo perceberiam que suas palavras não passam de deslavada fraude ética e moral. E isso fica mais evidente quando, vasculhando arquivos dos grandes jornais e revistas nos últimos 20 ou 30 anos, não encontramos qualquer registro de que os igualmente ex-presidentes Tancredo Neves, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso e José Sarney tenham, enquanto enfermos, no exercício da presidência da República ou não, buscado atendimento médico provido pelo Sistema Único da Saúde.

Cercadinho midiático

Do mesmo jeito, não temos conhecimento de qualquer endosso, velado ou escancarado, por parte de nossos paladinos da liberdade de expressão, a uma campanha para que demais lideranças políticas como os ex-governadores Mário Covas, Leonel Brizola e Orestes Quércia, apenas para mencionar uns poucos, tenham sido instados a recobrar sua saúde física e mental usando a estrutura do SUS. Todos calaram, desconversaram ou, simplesmente, fizeram o que seria mais apropriado: a questão de uma celebridade – seja política ou do mundo artístico – buscar tratamento em hospitais particulares carece de qualquer relevância jornalística. E por uma razão basilar: em qualquer país do mundo, em qualquer sociedade, seja capitalista ou socialista, democrática, teocrática ou ditatorial, as pessoas enfermas buscam tratamento médico de acordo com suas posses e de acordo com a capacitação dos médicos e a qualidade inovadora dos equipamentos hospitalares que suas finanças possam arcar.

Então, caberia perguntar, por que toda a algaravia? Por que tamanha potencialização de um clamor que não se sustenta em pé por si só? Por uma razão também basilar: o preconceito de classe. Isso mesmo: um ex-operário, sem diploma acadêmico, por mais que tenha alcançado o topo do poder político nacional por duas vezes consecutivas, e por mais que possa colecionar diplomas de doutorado na categoria honoris causa, a ele outorgados pelas mais prestigiosas universidades do mundo, ainda assim continuará sendo visto sempre pelas lentes do preconceito tupiniquim. Um preconceito que lhe joga na cara sempre que pode: “Você, não passa de um operário! Trate-se sua saúde, então, como reles operário que é. Não renegue suas origens, siga o caminho que o seu povo deve seguir em caso de doença”.

Explicação mais simples que essa, impossível. Será que não passa pela cabeça dos que clamam para que Lula se trate no SUS – ou pelos que, na mídia, avalizam a infeliz iniciativa – que nunca, absolutamente nunca, qualquer sistema de saúde mantido por qualquer governo terá orçamento suficiente para manter em seus quadro clínico os mais gabaritados cientistas na área médica, os mais renomados estudiosos dessa ou daquela enfermidade; e também não terá condições de manter em funcionamento, 24 horas por dia, os ultrassensíveis (e caríssimos) equipamentos hospitalares de ponta?

A verdade é que as matérias impressas nos dois ou três principais jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro têm um único objetivo: tonificar o preconceito contra o ex-operário Lula. Aquele mesmo que foi duplamente eleito presidente do Brasil e que, de quebra, ainda elegeu sua sucessora.

Essa mesma imprensa, tão ciosa em seu diuturno esforço por se autoproclamar guardiã de postulados éticos, ao invés de apoiar manifestações tão mesquinhas, deveria repudiá-las. Mas, mesmo desejando agora repudiar, suas manifestações carecem de autoridade moral porque não se encontram nelas algo essencial ao bom jornalismo: a pureza de motivos. Daí que alguns jornalistas, aproveitando para reverberar ainda mais a funesta campanha, aproveitam seu cercadinho midiático para expressar solidariedade ao ex-presidente desancando “seus infelizes e-leitores”, que demonstram tamanha desumanidade quando o momento seria mais propício para “expressar a mais elevada carga de caridade humanitária”.

Esquecem-se que, assim como nos ensinavam os gregos antigos (“dize-me com quem andas, que te direi quem és”), na situação atual poderíamos cunhar algo como “dize-me quem lês, que te direi o que pensas”. Com efeito, cada jornalista, cada colunista, cada analista na imprensa, tem exatamente o leitor que o merece.

Exemplo de superação

Não gostaria de encerrar sem antes me conceder outro exercício mental. É o seguinte: e se o ex-presidente Lula decidir se tratar, sim, pelo SUS? E se, por essas coisas do destino, lograr completa recuperação, igual ou melhor que aquela a ser provida pelo sistema privado de saúde? Seria o caso de esperarmos uma nova campanha dizendo que “o presidente Lula, embora tratado pelo SUS, recebeu cuidados médicos de seu médico particular de longa data – mais de 20 anos –, o doutor Roberto Khalil”?

Irônico constatar que a campanha “Lula vá para o SUS” é promovida pelos mesmos entes públicos, privados e midiáticos que orquestraram não faz dois anos aquela campanha contra o restabelecimento da CPMF, que deveria alavancar expressivo montante de recursos para subsidiar a saúde pública. Os mesmos que brandem tão insidioso ataque ao ex-presidente parecem esquecer o provérbio popular que reza “o câncer não dá só nos outros” – e, certamente, seriam os primeiros a buscar hospitais de primeira linha.

Desejo a Lula votos de rápida recuperação em sua saúde. Para alguém que já superou outros tipos de câncer, como o da ignorância e truculência da ditadura, o do preconceito dos poderosos e o da inveja dos fracassados, temos que esperar que um câncer na laringe é, por assim dizer, dos males, o menor.

O que me enoja, não é o câncer do Lula. O que me enoja é o partidarismo político-partidário da grande imprensa. Isso me enoja. Muito.

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2 de novembro de 2011

A revolução do jornalismo

Alguém aqui já participou de alguma revolução? Alguém desceu, com Camilo Cienfuegos e Vilma Espín, a Sierra Maestra para tomar o poder do ditador Fulgêncio Batista, em Cuba? Alguém esteve no Vietnã, no início dos anos 1960? Alguém ainda lembra daquele arremedo de revolução dos jovens de 1968, armando barricadas que iam do Quartier Latin, em Paris, até Trafalgar Square, em Londres, passando pela Cinelândia, no Rio de Janeiro? À exceção da chamada primavera árabe, com a deposição de governantes, tiranetes ou não, nem mesmo isso podemos classificar – se formos cuidadosos com o vernáculo – como revolução. A pergunta continua, então, a mesma: alguém aqui participou de alguma revolução?

Revolução deságua no verbo transitivo direto revolucionar. E revolucionar, bem o sabemos, é o ato ou ação de provocar alterações físicas, estruturais; provocar mudanças visíveis em um cenário, ou em um “estado de coisas”. As revoluções, que salpicam duas de cada três páginas desse vasto somatório de desatinos humanos a que chamamos História, são momentos em que as massas se sublevam contra a ordem estabelecida, traduzem sentimentos de revolta contra os fundamentos e os focos de onde irradiam o poder que mantém coesa e inteira tal ordem.

E, para que se faça a revolução, algumas condições são fundamentais: (1) algum ideal pelo qual valha a pena lutar; (2) desejar agitar mentes e corações; (3) causar problemas a quem sempre criou problemas para os demais; e, (4) alvoroçar a superfície das consciências acomodadas.

Salvação do planeta

Mas existem outros tipos de revoluções. Bem longe do alarido da máquina de guerra, distante também de atos de heroísmo, e que não contabilizam número de mortos e feridos. São as revoluções que transformam profundamente a mentalidade, o ideário, se insinuam no campo da cultura, do conhecimento, e causam sensível mudança na forma de nossa interação na sociedade, seja através de descobertas e invenções realmente inovadoras, ou de meios que aceleram a obsolescência de pensamentos e ideias até então vigentes.

Alguns exemplos recentes desse outro tipo de revolução: o uso da pílula anticoncepcional dando início à chamada liberação sexual e as manifestações artísticas do movimento da contracultura, alterando a percepção da literatura em geral, da poesia, da música, do modo de vestir, da forma de se relacionar com o couro cabeludo e muitos outros afluentes daqui derivados.

A revolução para a qual buscarei captar a atenção do leitor é de outra natureza e se acha bastante impregnada na rotina diária de parcela significativa da população mundial: a revolução promovida pelas novas tecnologias, que estão mudando o panorama das comunicações em todo o mundo.

Como resultado clássico das revoluções, as baixas, nesse contexto, continuam ainda em processo de contabilização, como se cumprissem um hipotético compasso de espera. A consequência inevitável é a extinção de alguns tipos de mídia, principalmente no meio impresso, como já vem ocorrendo – e a constatação de que muitos jornais deixaram de circular e muitos outros ainda se encontram com os dias contados, em vias de desaparecer. Não é alarmante atestar que a imprensa vivencia a maior crise desde o surgimento do chamado jornalismo de massa, há apenas 150 anos.

Os meios de comunicação vivem um momento bastante diverso daquele existente há 15 anos. O surgimento da internet tem mostrado potencial suficiente para alterar de forma irrecorrível o “nosso” ecossistema midiático. É como se o campo da comunicação ainda se recuperasse dos estragos causados pela colisão com um meteoro – meteoro apenas sentido em sua verdadeira dimensão apocalíptica nas cenas do filme Independence Day. No filme de Roland Emmerich (1996), uma data é fixada na memória da plateia: 2 de julho. O longa de ficção norte-americano informa que naquele dia os sistemas de comunicação do mundo inteiro viverão o caos, devido a uma estranha interferência atmosférica causada por imensos meteoros cujo alvo final não é outro senão o de colidir com a Terra.

O resto do filme é ficção barata amparada em dispendioso orçamento, com direito à inserção de seres alienígenas. E, como tudo o que se produz nos Estados Unidos da América, a “patriotada” é logo garantida: no dia 4 de julho – porque não em 3 ou 6 de julho? – surge a única possibilidade salvadora do planeta: para vencer o invasor, a condição essencial é que todas as nações se unam, pois o que está em jogo é nada menos que a existência da raça humana.

Variedades e entretenimento

A crise que, ainda na década de 1990, mostrou elevada intensidade, apenas nos Estados Unidos fechou as portas de mais de 180 jornais e ceifou nada menos que 23 mil empregos. Mas engana-se tremendamente quem, em sua miopia, consegue ver o impacto da internet apenas no meio impresso, no segmento dos jornais e das revistas. Canais de TV que suprem o nicho dos interessados em notícias 24 horas por dia, como a CNN, grande sensação no fim dos anos 1990, e a sua irmã caçula Al Jazeera, enorme aposta do mundo árabe nos anos 2000, também vivem grave crise econômica. E a razão é uma, apenas uma: os canais de informação enfrentam sérias dificuldades ao tentar concorrer com a internet. Não por acaso, no coração do velho continente europeu o mais vistoso e tradicional canal da Espanha simplesmente fechou.

O desenvolvimento das redes sociais e dos blogs representa um avanço impossível de ser freado: há novos atores no processo de comunicação que não podem ser ignorados. Há 20 anos, o fenômeno era a CNN, mas se estivesse escrevendo este texto três anos atrás, possivelmente não mencionaria o Twitter nem o Facebook. A realidade que se nos impõe demonstra, de maneira a não admitir contestação, o fato de que o jornalismo – tal como o conhecemos ainda – perdeu por completo o monopólio da informação. Isso porque, com ou sem chancela do diploma de jornalista por parte do Supremo Tribunal Federal (caso do Brasil), todos podem hoje, sejam cozinheiros, médicos ou estudantes do ensino médio, consultar, acessar e produzir informações. Como também podem criar pautas, cumprir pautas e reunir em torno da pauta escolhida todo o conhecimento necessário ao desenvolvimento do assunto e, tudo isso, demandando esforço equivalente e não superior a uma dúzia de cliques.

Os efeitos da internet na vida ordenada das sociedades são potencializados pela sensação de decrépita decadência que tem enfermado nossos principais veículos de comunicação, que não se curaram do sarampo do monopólio nem da catapora do partidarismo político nunca assumido, mas sempre exercido. É com esse contexto de completa insegurança quanto à lisura, à veracidade e a adequada contextualização da informação que nos defrontamos.

A verdade é que não podemos confiar no que os jornais publicam, muito menos no que as revistas publicam e bem menos no tipo de telejornalismo que campeia nossos canais de TV aberta, situação paralisante em que nunca sabemos discernir muito claramente o que é jornalismo e o que não passa de mero clipe na longa cadeia dos programas de entretenimento e variedades destinados apenas a realçar o que há de mais bizarro na natureza humana e, assim, continuar ostentando bons números de audiência.

Conceitos enevoados

É chegado o momento para atualizar um dos mais conhecidos e reverenciados gritos de protesto político, lançado no Manifesto Comunistaem 1844, por Karl Marx e Friedrich Engels: “Trabalhadores do mundo, uni-vos!” E não tardará para que nos acostumemos a ouvir o alargamento da frase para algo como: “Trabalhadores do mundo da informação, uni-vos!”

Porque será necessária uma forte união dos novos protagonistas no campo da informação e da notícia para assegurar que estas circulem de forma livre, verídica e justa. Algo que, a grosso modo, bem poderíamos chamar de “bom jornalismo”, aquele jornalismo que volta aos bancos escolares e busca, novamente, apreender conceitos hoje tão abstratos e enevoados como ética, correção, isenção, imparcialidade e… decência.

https://www.observatoriodaimprensa.com.br/imprensa-em-questao/a-revolucao-do-jornalismo/

10 de novembro de 2011

O valor da informação

Perguntar se os jornais e outros meios de informação impressos estão com os dias contados ante a onipresença dos meios virtuais – web, internet – virou lugar-comum. E não falta quem se disponha a marcar uma data: os jornais estão em processo de desaparecimento acelerado, coisa de mais 5 a 10 anos, e não passa disso. Outros, mais cautelosos e traindo certa espécie de nostalgia, contra-argumentam que não, os impressos não desaparecerão, assim como o surgimento do telegrama não promoveu o enterro da carta e nem o advento da televisão decretou o fim do cinema.

Mas é fato que existem motivos reais, e não imaginários, para se preocupar com a continuidade dos meios impressos, ao menos como estes se apresentam hoje em dia. E o debate não pode ser distanciar de seu centro irradiador: a circulação da informação.

Não faz muito tempo, era comum se utilizar a expressão “meio circulante” para designar dinheiro, moeda, meio de pagamento. Ainda podemos assim definir aquele “papel com valor monetário de face”, mas o que realmente passou a ser meio circulante é a informação. A informação correta transforma-se em moeda sonante em qualquer dia movimentado na bolsa de valores. A informação antecipada para alguns poucos privilegiados antes que seja de domínio público pode favorecer a duplicação de riqueza de quem saiba fazer seu melhor uso ou, simplesmente, decretar o estado de falência de quem não lhe dedicar a devida importância. A informação é tão valiosa quanto confiável for a sua fonte.

Palavra e ação

Da descoberta de uma nova fronteira para exploração de petróleo até a aquisição de uma pequena cadeia de lojas varejistas por algum conglomerado financeiro, tudo isso pode resultar em ganhos presentes e, mais, ganhos a serem amealhados nos futuro. Novamente, o valor da informação encontra-se na confiabilidade de quem a transmite e se a transmite adornada pela veracidade, fidedignidade. Com os meios de comunicação – sejam impressos ou outros quaisquer – acontece o mesmo.

O que se pede de informação hoje? Antes de tudo, que seja confiável. Muita informação que recebemos não é confiável e às vezes, inclusive, falsa. E não é confiável por razões como a de buscar influir no processo político de uma cidade, de um ente federado ou do país; favorecer interesses comerciais que lhe garantam patrocínio, publicidade e outros ganhos financeiros. Uma informação não confiável é, geralmente, filha dileta de um ato de manipulação voluntária quando não apenas fruto de má intenção mesmo.

Como avaliar o grau de confiabilidade de uma informação em uma época que endeusa os que praticam espertezas, os que sempre encontram o famoso jeitinho brasileiro para contornar uma ou outra lei, em um tempo marcado por tão extensa crise de valores? Um canal de televisão – ou uma emissora de rádio – no momento mesmo em que difunde uma informação dificilmente têm condições de afirmar que a informação é verdadeira. Por que há muita subjetividade envolvida, a começar pelos interesses ocultos e não expressos de suas próprias fontes.

O uso de expressões como “de acordo com as fontes consultadas…” ou o muito batido “ao que parece”, sempre levando para o condicional o que deveria ser afirmativo, demonstra ser prática além de corriqueira, abusiva. E os jornalistas, nem sempre de má-fé, privilegiam mais a velocidade da transmissão da notícia do que a veracidade desta. Estão conscientes de que a captação da audiência depende da rapidez com que a notícia é tornada pública; limitam-se a transmitir uma informação mais rapidamente possível, porque sabem que parte da captação da audiência depende da rapidez – e não da verificação da veracidade – com que uma informação é difundida.

É a reedição, infinitas vezes, da velha luta que envolve palavra e ação, intenção e gesto, forma e conteúdo. E é a real distância entre bom jornalismo e mau jornalismo.

Paladinos do bem comum

Estamos muito longe de ter um jornalismo que vista as notícias com a roupagem da confiabilidade. Porque o partidarismo político se instalou de vez nos meios de comunicação e esses meios, longe de desejar vender apenas informações aos seus leitores, ouvintes, telespectadores, almejam algo bem mais ambicioso: desejam vender aos seus anunciantes o poder político.

Porque é do poder político que nascem campanhas milionárias – sejam eleitorais, sejam publicitárias – e é desse poder político que são criados, regulados, reformulados ou extintos os impostos e taxas a serem cobrados dos meios produtivos, especulativos e da população em geral; bem como é do poder político que emanam as leis que regulam mercado de capitais e o mercado financeiro como um todo.

Por essa ótica, sempre que um governo, seja de qualquer esfera, contrariar os interesses de determinado grupo – político ou financeiro –, é sinal de que os meios de comunicação logo serão acionados para lhe fazer oposição, fragilizar suas políticas públicas por meio do ataque aos seus ministros, esgarçar sua base de sustentação no parlamento e retirar deste a legitimidade de representar a “opinião pública”, autoproclamando-se como paladinos da defesa do bem comum, dos direitos da coletividade.

Alguma semelhança com nosso velho Brasil?

https://www.observatoriodaimprensa.com.br/feitos-desfeitas/o-valor-da-informacao/

18 de novembro de 2011

O obituário em vida

O programa Fantástico produzido pela TV Globo e exibido no domingo (4/12) fez jus ao título, e com todas as letras: f-a-n-t-á-s-t-i-c-o. Assisti partes e pareceu que estava assistindo a todo o programa. Reconheço que continuei com a má impressão e o pé atrás que sempre tive em relação a essa produção global. Uma espécie de folhetim de variedades, um tipo de fim de feira noticiosa, um jeito de jornalismo camuflado em que não sabemos qual a abordagem adequada – seriedade ou pilhéria? – para um ou outro tema.

E também não é de hoje que a TV Globo arranja um jeito de homenagear seu contratado de longa data, o humorista Chico Anysio. Ele começou a trabalhar na Globo em 1969 e durante nada menos que 39 anos manteve no ar o seu sempre campeão de audiência Chico Anysio Show.

Há poucos meses, em julho de 2011, após 110 dias no hospital, Chico Anysio deu entrevista à revista Veja e não economizou nas farpas à Globo. “Foi muito ruim. De 1957, quando entrei na televisão, até 2002, quando extinguiram meus programas, sempre fui líder de audiência. Não sabia o que tinha feito de errado. Passei dias pensando em todos os diretores da Globo, um por um, para tentar chegar a quem teria me boicotado.” E completou: “Também pensei que os irmãos Marinho não gostavam de mim. Se o pai deles [Roberto Marinho, fundador da Rede Globo] estivesse vivo, eu não teria saído do ar”.

Questão de idade

É inegável que Chico Anysio é o maior humorista do país. E também o humorista mais ranzinza, muito chegado a reclamar em público – e a se desculpar em privado, dizem alguns. Chico Anysio diz ter sido muito ruim e nunca engoliu ter caído no ostracismo, a partir de 2002. A sua expectativa à época era a de que a emissora lhe daria um cargo de supervisor, mas isso não aconteceu. E outra decepção é com relação ao humor transmitido pelo canal, no formato de temporadas com poucos episódios. “Quero ver criarem fenômenos duradouros, capazes de lançar bordões que se repitam nas ruas, como faço”, alfineta.

As homenagens de agora têm um quê de forçado e não poderia ser de outra maneira, já que ao observador minimamente informado parece um ajuste de contas em sua sempre conturbada relação com o comediante: agora é o tempo de fazer as pazes, deixar ao largo as diatribes daquele que um dia pensou ser maior que a emissora e que, longe de a ela pertencer, ao menos a sua audiência muito devia a ele.

Conhecido como vaidoso às raias do extremo, egocêntrico a não mais poder, Chico Anysio nunca deixou de criticar a Globo. Ainda em 2009, para não retroceder muito no tempo, o versátil Chico chegou a fazer uma ponta na novela das 9, Caminho das Índias, mas nem isso lhe fez diminuir a artilharia contra a emissora. Chico não perdoa a juventude por estar ocupando seu espaço. “O elenco de Caminho das Índias é gigantesco, mas eu contraceno sempre com os mesmos. E, assim sendo, há pessoas que eu nunca vejo, como a [Letícia] Sabatella, a Laura Cardoso. Tem pelo menos uns 15 cujo nome eu nem sei, porque a Globo está cheia de jovens”, disse à época.

Vem de longe suas discussões com os diretores globais Daniel Filho, Jorge Fernando e Wolf Maia, para ficar em três apenas. Sobre Daniel Filho ele faz recair a culpa pelo que chama de “juvenilização” da emissora. “Levaram o Daniel a sério e isso tem sido uma tortura para quem tem mais de 50 anos. Por causa disso, o Marcos Palmeira já fez papel de avô numa novela. O que, aliás, o irritou a ponto de ele sair da Globo e ir para a HBO fazer Mandrake”, afirmou.

As farpas direcionadas a Jorge Fernando derrapam feio na cortesia e até no profissionalismo que deveria se esperar do veterano humorista. “Eu me pergunto por que me chamam de nepotista por ter três filhos trabalhando – dois como atores e um na direção de TV. Que nome se dá ao Jorge Fernando? Mamatista? Escalar a mãe é uma dose um pouco forte sob o meu ponto de vista”, disse.

Se um é culpado por rejuvenescer, ao menos em questão de idade dos atores e atrizes, outro é atacado por motivos menos usuais. Mas é para Wolf Maia que o veneno maior é destilado por Chico Anysio. Vejamos suas digressões: “Ele pega a novela, lê, olha bem e escolhe um papel para ele próprio interpretar. Não acho que ele faça mal, que não seja um grande ator, mas é uma covardia, por exemplo, com o José Mayer, o Humberto Martins e outros no mesmo nível e idades semelhantes. Isto não devia ser permitido, a não ser que ele entrasse para fazer papel de Wolf Maia – o que seria fácil de conseguir: bastava um telefonema para o autor”, completou.

Festa-surpresa

É nesse caldo de mágoa com ressentimento que os telespectadores da emissora (a maior parte da população brasileira) assistem à escalada de homenagens quando Chico Anysio é internado em hospital para tratar de sua frágil saúde, ou quando recebe alta deste e se dirige à residência. Chega a ser patético o esforço para produzir a imagem de que a relação Chico-Globo nunca esteve tão bem. Será mesmo?

O ponto que desejo realçar é que fiquei, vamos dizer assim, constrangido com a abordagem do Fantástico de domingo, dia 4. Não sei por que, mas, instintivamente, como quem zapeando pega o canal da Globo e se detém por alguns minutos, entretido com a locução e as imagens, de repente me vejo perguntando aos de casa: “Chico Anysio morreu?” Não sei se eu apenas tive essa funesta impressão, mas a verdade é que o tom da reportagem era como de despedida, como se fôssemos espectadores de um obituário ao vivo de uma pessoa viva. Recebendo a negativa de minha mulher, de que Chico continuava no mundo dos vivos e – graças a Deus – bem disposto, dando entrevista e tudo, fiquei pensando se não estava muitos tons acima do que seria uma reportagem, por mais que seu intuito fosse o de homenagear. Voltei a pensar na vaidade do homenageado e arrisquei: “É bem Chico Anysio, ele gostaria de receber todas as homenagens ainda em vida, e não na hora derradeira, inescapável a todos nós, meros humanos, meros mortais”.

Uma coisa é certa, existem coisas que não podem e não devem ser antecipadas. E uma delas é o obituário. A beleza – se é que há uma beleza nisso – é que o homenageado não deve tomar conhecimento dele, ficando para a história o reconhecimento real, feito em meio às lágrimas da partida. É como aquelas festas-surpresa: se acabar a surpresa, deixa de ser festa-surpresa. Simples assim.

https://www.observatoriodaimprensa.com.br/monitor-da-imprensa/o-obituario-em-vida/

7 de dezembro de 2011

Outro ano que não terminou

Nunca houve um ano tão – vamos dizer – dramático para a imprensa mundial como este que tem as horas contadas. Janeiro de 2011 viu o poderio das mídias sociais a serviço da liberdade e dando um basta à opressão e às diversas formas de tirania em países como o Egito, a Tunísia, a Líbia, o Iêmen. E continuam balançando os que exercem o poder fundado unicamente na força dos tanques, como os da Síria e os da Jordânia.

Manifestações políticas – e quase sempre pacíficas – foram convocadas através do uso do Twitter em larga escala e dos torpedos disparados de celulares como os smartphones produzidos pela Blackberry, Apple e Motorola. As imagens foram instantaneamente registradas e atravessaram em segundos continentes, regiões e nações, abastecendo em sua travessia sites e blogues, frequentando milhões de murais de usuários do Facebook, Orkut e MySpace. É como se a liberdade do mundo virtual tomasse de assalto, como epidemia, o mundo real.

Boas notícias

Um ano em que os jornais ditos sérios do mundo – El País, Le Monde, Frankfurten Allgemeine, The New York Times e The Guardian – praticamente se transformaram em diários inteiramente dedicados à economia. Isto porque a economia mundial ficou literalmente de pernas para o ar. A Grécia engolfada em crise aparentemente insolúvel, com gregos se imolando em praça pública, governo mudando às pressas. A Itália também começando a falar grego, vendo o vendaval financeiro balançar sua frágil credibilidade e Silvio Berlusconi saindo de cena de maneira atabalhoada.

A Espanha com suas muitas greves e estonteante nível de desemprego, mudando de governo para manter-se como está, em estágio pré-falimentar. França e Alemanha buscando dar equilíbrio à economia do euro e com muitas incertezas quanto à manutenção de sua saúde financeira, à medida que franceses e alemães ouvidos em pesquisas preferem rejeitar os estatutos da Europa Unida e o euro como sua moeda comum.

Não é descabido pensar que o regime cruel e perverso dos aiatolás iranianos está com os dias contados: não é razoável proibir 78 milhões de iranianos de acessar a internet por tempo indeterminado. Seria necessário “clonar” cada iraniano com o seu Avatar-Vigia. E isso sim, é de todo impensável e impossível.

O mesmo acontece com os cerca de 1,4 bilhão de chineses que parecem – ainda – bem conformados com uma web sujeita a restrições de acesso, engessada que é por diversos filtros ideológicos. Mesmo este cenário chinês não resistirá à lufada de ar puro, com sabor de liberdade, que haverá de soprar de baixo para cima, do coração para a mente de tantos milhões de seres humanos.

Quem viver acessará essas boas notícias – ou melhor, quem viver, verá tão estupendas transformações nos murais das redes sociais, nos sites e blogues independentes, esses mesmos que, no Brasil, são chamados pela grande imprensa de “blogues sujos”.

Denúncia letal

No Brasil, este observador detectou sintomas profundos de uma imprensa que renunciou de vez a missão de ser espelho da sociedade:

** Potencializou pequenos escândalos em megaescândalos, resultando na demissão de seis ministros do governo Dilma Rousseff;

** Criou escândalos para todos os gostos, como se esses surgissem em pencas, mas não conseguiu seu tento maior: derrubar quem, por direito, poderia nomear e demitir ministros: a presidenta da República. E, bem ao contrário, e a contragosto, se viu impelida a divulgar os mais elevados índices de aprovação de um presidente ao fim de seu primeiro ano de governo. A verdade é que a aprovação de Dilma superou, em muito, a excelente avaliação de seu antecessor Lula da Silva;

** Deixou de divulgar ou minimizou ao máximo todos os escândalos de corrupção existentes no governo do estado de São Paulo, com uma dúzia de CPIs propostas na Assembleia Legislativa paulista sendo sumariamente barradas, arquivadas, abortadas;

** Tirou proveito, de forma mesquinha, quando não extremamente grosseira e desrespeitosa, do anúncio do ex-presidente Lula da Silva de que se submeteria a tratamento de um câncer na laringe; e até o apoio subliminar para que Lula se tratasse no SUS foi amplamente repercutido por colunistas das grandes revistas semanais;

** Minimizou a boa fase da economia brasileira se comparada à economia mundial, sempre optando (ou seria torcendo?) para que o país desandasse com decisões econômicas erráticas que trouxessem à tona o velho flagelo da inflação e os habituais índices de desemprego em alta, tão comuns nos anos 1980 e 1990;

** Se fez de morta ante a mais letal denúncia de maracutaias jamais publicada no Brasil, envolvendo personagens por ela sempre blindados, como o ex-governador paulista José Serra, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e os seus bem-sucedidos (empresarialmente) herdeiros, Verônica Serra e Paulo Henrique Cardoso; e tudo isso publicado na forma de livro – A Privataria Tucana –contendo dezenas de documentos dos malfeitos com o dinheiro público, escrito pelo jornalista, ganhador do Prêmio Esso de Jornalismo, Amaury Ribeiro Jr.

Tudo indica que 2011 irá se juntar a 1968 para ser – na feliz expressão de Zuenir Ventura – mais um ano que não terminou.

Feliz 2012 a todos.

https://www.observatoriodaimprensa.com.br/interesse-publico/outro-ano-que-nao-terminou/

28 de dezembro de 2011

Cabeças vazias, corpos sarados e comportamentos patéticos

Não demorou muito e o BBB é caso de polícia. Mais, é caso de estupro. Mais, é caso do habitual descaso com que a programação da tevê aberta brasileira é tratada tanto pela sociedade quanto pelas instâncias governamentais.

A 12ª edição de um dos programas mais fúteis dentre a enormidade de produção de lixo televisivo nem chegou a completar uma semana de existência e já mostrou a que veio: vender cabeças vazias em corpos sarados e uma série quase interminável de comportamentos humanos aceitáveis na esfera privada e patéticos quando transbordam para a esfera pública.

Na noite de sábado [14/1], festa no BBB. Prenúncio de comas alcoólicos e certeza de danças variando entre o sensual e o erótico, ritmo alucinante, luzes piscando e tudo contribuindo para a exposição, sem reservas, dos instintos humanos. Na madrugada de domingo, o Twitter passa a movimentar um sem número de mensagens denunciando Daniel de ter estuprado Monique, tudo captado pelas lentes do BBB, tanto imagem de cobertor em movimento quanto som. O problema, segundo o Twitter, é que apenas um dos dois parece estar vivo – apresenta, vamos dizer, sinais vitais. Este seria o Daniel. Não tardou para que hashtag #DanielExpulso viesse a ser um dos tópicos mais comentados do domingo.

E a onda se espraia na internet com força de tsunami: todos se unem para pedir a cabeça do Daniel e, de quebra, criticar ferozmente a existência de um programa como o Big Brother Brasil. Muitos questionam a correção em classificá-lo como programa. Muitos anunciam que irão boicotar a marca de automóveis Fiat, aquela que premia os carros entre os participantes e entre a audiência, e muitos clamam por intervenção do governo na grade de programação da tevê aberta.

Caso de polícia

Na tarde da segunda-feira [16/1], investigadores da polícia vão ao Projac (centro de produção da emissora, localizado na Zona Oeste do Rio) para apurar a suspeita de que Daniel teria abusado sexualmente de Monique durante a madrugada do último domingo [15/1]. A essa altura, Monique, a presumida vítima, é chamada no “confessionário” para dar explicações sobre o que aconteceu entre ela e Daniel na madrugada de segunda-feira. A moça parece não dizer coisa com coisa, algo como “não sei muito bem”, “acho que não passamos disso”, “ele seria muito mau-caráter se tivesse se aproveitado de mim”, e por aí vai. Logo, as notícias na internet, em particular no sítio G1, da TV Globo, produtora e responsável pela “atração”, passam a divulgar que a moça negou a ocorrência de estupro e replicam a fala do diretor-geral do reality show, J.B. Oliveira, o Boninho. “Ela não confirmou que teve sexo e disse que tudo o que aconteceu foi consensual. Não dá para garantir que houve sexo, muito menos estupro. Eles estavam debaixo do edredom e de lado. Mas o mais importante é que ela [Monique] estava consciente de tudo. Ela me disse que na hora que o clima esquentou pediu para ele [Daniel] sair da cama”. Não ficaria por aí: “O que está acontecendo nada mais é que racismo”.

Ainda na segunda-feira, a ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres, Iriny Lopes, enviou ofício ao Ministério Público do Rio de Janeiro solicitando que o órgão “tome providências em relação ao suposto estupro que teria acontecido dentro do programa Big Brother Brasil 2012, exibido pela TV Globo.”

Nesta mesma noite, Pedro Bial lê em teleprompter a nota oficial da TV Globo dando conta da expulsão de Daniel por “haver infringido gravemente o regulamento do BBB”. É evidente o clima de constrangimento, sentimento que nem deveria existir em se tratando do BBB, que bem poderia ser visto como uma gincana ininterrupta de constrangimentos… à condição humana. Patética a figura de Bial. Porque ele é aquele jornalista que cobriu a histórica derrubada do muro de Berlim, em novembro de 1989, e mostra à larga que o seu talento é melhor aproveitado fazendo o que faz há 12 anos seguidos no BBB: uma mistura de mestre-de-cerimônias com animador de picadeiro e bedel de escola primária com direito a filosofices tão rasas quanto o programa em que foi aceito como sumo pontífice. Fez o caminho de volta sem ao menos ter ido.

Silêncio da imprensa

Em um país que busca combater a violência contra a mulher em seus muitos aspectos e, em especial, combater o crime de estupro, chama a atenção o silêncio da grande imprensa em torno do caso. Sim, porque pedidos pela expulsão de Daniel e punições à TV Globo não partiram dos jornais Folha de S.Paulo, Estado de S.Paulo e muito menos da emissora-líder na desconfortável posição de facilitar a ocorrência de estupro, com tudo gravado, segundo a segundo, e retransmitido para todo o Brasil. As denúncias começaram na forma de “piados” (twitter, em inglês), passaram pelo Facebook e tomaram forma nos tais blogues sujos (para a grande imprensa) e alternativos (para a cidadania).

No espaço de 24 horas, muitas águas rolaram nos desfiladeiros oceânicos da internet. Muitos levantaram o assunto na forma de algo adredemente planejado pela emissora do Jardim Botânico carioca para alavancar a audiência do BBB nesta sua 12ª edição. Outros tantos foram mais enfáticos e exigiram nada menos que a suspensão do programa por tempo ilimitado ou, ao menos, pelo tempo em que durarem as investigações policiais. Mas isto é pedir muito quando estão em jogo interesses unicamente comerciais. Porque o dinheiro não tem nem pátria, ética, nem moral, nem costumes. Tem apenas a densidade que seu proprietário a ele conceda. E nesses tempos em que a liberdade é vista como garantia de expressão dos instintos humanos básicos a qualquer momento, o sucesso nada mais é que conseguir esticar ao máximo seus quinze minutos de fama (lembram do Andy Warhol?), amealhar bens materiais e financeiros sem qualquer escrúpulo, usando os meios mais torpes para sua consecução. Neste contexto, não há muito o que esperar.

Nos últimos três anos escrevi no Observatório da Imprensa críticas ao conteúdo, formato, estilo, produção e transmissão do Big Brother Brasil. Tratei de estética, de conteúdo, de ética e de direitos humanos. Abordei a questão da privacidade e o circo de horrores que a qualquer momento poderia vir a ser a marca registrada do BBB. Depois, resolvi não mais escrever. Porque é difícil falar para o deserto, ou pior, para o vácuo. Mas com a chegada da polícia ao Projac julguei oportuno voltar a tratar do “assunto”. Não porque o programa mereça, mas sim porque é um momento propício para debater sobre a sociedade que temos e a sociedade que queremos.

E qual o papel da mídia, enquanto espelho da realidade, na formulação dessa nova sociedade, uma sociedade que seja justa, igualitária, fraterna, inclusiva e promotora dos direitos humanos?

https://www.observatoriodaimprensa.com.br/interesse-publico/cabecas-vazias-corpos-sarados-e-comportamentos-pateticos/

18 de janeiro de 2012

Repórteres sem Fronteiras e seu estranho relatório

Na semana passada, a International News Safety Institute (Insi) colocou o Brasil como o 8º país mais perigoso no mundo para o trabalho da imprensa. Na quarta-feira (25/1) encontro publicado no site do jornal Estado de S.Paulo que o Brasil fica em 99º no ranking sobre liberdade de imprensa. E vai além: o país já esteve melhor. Antes ocupava a 48ª colocação, caindo, portanto, 41 posições. As informações vêm da organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF), que alega como “justificativa da queda” o aumento da violência e a morte de três repórteres no país, ano passado.

A mesma organização apontou as regiões Norte e Nordeste do Brasil como as mais perigosas para os jornalistas e destacou a presença do crime organizado e de atentados contra o meio ambiente como as principais ameaças à atividade dos profissionais da imprensa. O relatório, que vem sendo divulgado há dez anos, na presente edição 2010-2011 não cita os três crimes mencionados no estudo. Tem algum zumbido aí.

Para não ficar cercando Lourenço em torno do umbigo, destaco do relatório da RSF que “da América Latina, o Uruguai foi o melhor [sic] colocado (32º); a Argentina ficou em 47º e Chile e Paraguai, em 80º. Depois do Brasil, aparecem Equador (104º) e Bolívia (108º). Nas últimas colocações ficaram Turcomenistão, Coreia do Norte e Eritreia”. Finalmente, os campeões da liberdade de imprensa são esses gigantes em população, em dimensão geográfica e em pujança econômica jamais vistas: Finlândia, Noruega e Estônia. Não por acaso, os mesmos três países que apareceram entre os dez primeiros em 2010. Pois bem, o zumbido agora é catapultado à condição de insuportável ruído.

Cartão de visitas

Quem me lê, a esta altura já deve estar convencido que entendo tanto de aferição de liberdade de imprensa mundo afora quanto entendo das reais causas que levaram à queda do Império Romano ou das novas teorias dando conta que muito antes de os europeus descobrirem a América, os navegadores chineses haviam passado por aqui em suas possantes caravelas de juncos. Ou seja, qualquer um dos três assuntos consegue dar nó cego em meus neurônios sobreviventes.

Mas, acompanhando o trabalho da imprensa, dia a dia, hora a hora e ao longo de tantos anos, estou como que instintivamente estimulado a levar pouca fé nessas pesquisas. Sim, trata-se de uma questão de fé: ou se aceita a informação como válida in totum ou se a rejeita. Fico com a segunda alternativa.

Uma lacuna imperdoável o estudo da RSF não nominar os três jornalistas assassinados no Brasil. Tenhamos em mente a comoção que suscitou no país a trágica morte do repórter Arcanjo Antonino Lopes do Nascimento, conhecido como Tim Lopes. E nunca é demais homenageá-lo. Ele tinha 52 anos e foi dado como desaparecido em 2 de junho de 2002, depois de ter sido carbonizado por narcotraficantes cariocas. Mas sua morte mesmo só veio a ser confirmada após acurado exame de DNA dos fragmentos de ossos encontrados em cemitério clandestino.

Quase dez anos depois do ocorrido, Tim Lopes tem sido homenageado anualmente, principalmente pelas Organizações Globo, onde trabalhava há muitos anos, sendo já nome de rua, praça e escola pública no Rio de Janeiro. Entendo que, devido às investigações criminais e ao julgamento dos algozes de Tim Lopes, ficou patente que ele não foi vítima do cerceamento à liberdade de imprensa, mas sim da ação de bandidos enredados no tráfico de drogas.

Soaria muito estranho a liberdade de imprensa ser avaliada pela quantidade de jornalistas mortos por bandidos em embate com a polícia. Há menos de três meses, o cinegrafista Gelson Domingos, que trabalhava na Band, foi atingido no peito e morreu no tiroteio entre policiais e traficantes que aconteceu na Favela de Antares, Zona Oeste do Rio de Janeiro.Naquela operação, segundo informações da Polícia Militar, nove criminosos foram presos, cinco pessoas morreram, sendo quatro traficantes não identificados e o cinegrafista.

Se, por um lado, tanto sabemos sobre a trajetória, a vida e a morte do Tim Lopes, ficamos sem ao menos saber os nomes – apenas os nomes – dos três jornalistas brasileiros assassinados no Brasil no período 2010-2011. Seria o profissional da Band um dos três jornalistas mortos no país e que contribuíram de forma tão significativa, para que o Brasil perdesse 41 posições dentre os países que usufruem da liberdade de imprensa?

Daí que, na pressa de publicar tudo e qualquer indício que robusteça a insustentável tese de que o Brasil não desfruta de ampla e irrestrita liberdade de imprensa, os veículos que integram a grande imprensa nem ao menos fazem o dever de casa. Assim, em vez identificar lacunas deixadas por relatório com tão alarmante resultado, e procurar meios de preenchê-las – o que seria o básico para qualquer jornalista recém-formado –, fica-se ao Deus-informará. E este é um ponto crucial para considerar o estudo da RSF como minimamente crível.

É prudente que, ao se considerar as mortes de pessoas que exerceriam a profissão de jornalistas seja estabelecido, de forma clara e inquestionável, se esses profissionais foram realmente mortos em função do exercício da atividade profissional ou se o óbito ocorreu por motivos alheios à atividade jornalística. Motivos existem, e muitos; afinal, a segurança pública no Brasil não é exatamente o melhor cartão de visitas do país. A inexistência de informações confiáveis, de afirmações fincadas firmemente nas nuvens, nada mais fazem que levar água ao moinho da partidarização política há muito exercitada pela grande imprensa: há que se denunciar qualquer pensamento que afete a ideia da liberdade de imprensa. E o tema, por si só, vem sendo esgrimido quase que semanalmente em grandes jornais e revistas, como sendo a próxima vítima do governo brasileiro.

Ameaças no ar

E a Argentina, que no relatório de Repórteres Sem Fronteiras ocupa a 47ª posição, 51 pontos à frente do Brasil? Como se justificaria isso? No Brasil algum jornal foi empastelado ou recebeu ameaça nesse sentido? Na Argentina, sim. No Brasil, foram aprovadas leis claramente direcionadas a diminuir o poder de fogo e influência do Estado de S.Paulo ou de O Globo? Na Argentina, o Clarín tem até hoje sido vítima disso. No Brasil, impostos foram criados de forma a encarecer o custo do papel de imprensa? Na Argentina, sim. No Brasil, o governo tem movido mundos e fundos para destituir de seus donos alguma empresa jornalística? Na Argentina, sim.

Mas quem lê o noticiário sobre este relatório da RSF fica com a impressão de que a Argentina é aqui. Assim como um dia, décadas passadas, o Haiti era aqui. Resumo da ópera: Brasil, 99º; Argentina, 47º. Parece brincadeira de mau gosto. Piada mesmo. Assim como um dia foi o caso boimate: uma árvore que produzia filé bovino ao molho de tomate. Mesmo estapafúrdia, houve gente que acreditou nisso. E não foi gente-sem-jornal nem gente-sem-revista que levou isso a sério. O fato é que ainda hoje estudamos nas faculdades de jornalismo algo assim. O “fruto da carne”, derivado da fusão da carne do boi e do tomate, batizado com o sugestivo nome de boimate, foi noticiado como o mais sensacional “fato científico” de 1983 na revista Veja, em sua edição de 27 de abril daquele ano. E se transformou na boiveja, a maior “barriga” (notícia inverídica) da divulgação científica brasileira.

A tarefa de comparar países é bem mais complexa que comparar legumes ou veículos automotores. É que existe um índice de subjetividade envolvido e a necessidade de procurar ler as entrelinhas em que o contexto se revela. E é sempre árdua. Se o Brasil aparece tão mal na fotografia feita por Repórteres Sem Fronteiras, quais seriam os critérios usados para indicar a Finlândia, a Noruega e a Estônia para encabeçar tal ranking? Por acaso, em algum desses países o governo é exercido por uma similar da nossa Associação Nacional de Jornais? Os seus parlamentos serão formados por diretores de empresas de comunicação, chefes de redação, jornalistas há muito consagrados, publicitários e apresentadores de tevê de renome? E os judiciários estariam sempre isentos de julgar questões envolvendo direito de resposta? Sei não. Faltou apenas a organização declarar que nesses campeões da liberdade de imprensa o governo é exercido por sua própria imprensa.

Para tudo na vida há que existir o contraponto. Para a religião, para a ciência. Para a literatura e a matemática. Para o capitalismo, o socialismo e para o pacifismo e o terrorismo. É claro que se faz necessária a existência de uma instituição com a missão de aferir a realidade dos países em outras questões relacionadas com a liberdade de imprensa. Por exemplo, quais os países com os maiores índices de concentração de propriedade dos meios comunicacionais? Quais os monopólios mais longevos no ramo das comunicações?

Uma coisa é certa: certos rankings carecem de credibilidade porque parecem existir para atender interesses muito específicos. É como pedir a um vascaíno que avalie a real posição desfrutada pelo Flamengo no coração do povo brasileiro.

E até que tal ranking venha a lume, continuará sendo infinitamente mais fácil dizer que “os princípios de imparcialidade e lisura jornalística” são crescentemente ameaçados no Brasil por um Estado totalitário e insuflados por forças francamente antidemocráticas.

https://www.observatoriodaimprensa.com.br/educacao-e-cidadania/caderno-da-cidadania/reporteres-sem-fronteiras-e-seu-estranho-relatorio/

26 de janeiro de 2012

Israel e Irã, um rastilho de pólvora

Um dos mais emblemáticos eventos da atualidade está para tomar lugar na cena mundial, mas independente de seu escopo e graves consequências as editorias de Internacional de nossos jornais parecem optar por, como dizemos, comer mosca.

Refiro-me à escalada do esforço de guerra a envolver o Irã, Israel e, de quebra, as nações mais militarizadas do Ocidente. A disposição das peças no tabuleiro prenunciam um capítulo extemporâneo à Segunda Grande Guerra, oficialmente encerrada em meados de 1945. Jornais israelenses dão conta que, ouvidas fontes militares em off, a ofensiva do país acontecerá em cerca de três meses e a imprensa estadunidense aposta suas fichas que o Israel bombardeará Qom – onde se situa o maior número de instalações nucleares do complexo persa – em no máximo seis meses. Mas todos soam unânimes na crença que de 2012 não passa.

E seria o momento de a grande imprensa aproveitar esses meses de uma hipotética contagem regressiva para analisar situações, prever desdobramentos, antever consequências financeiras e econômicas advindas do sensível mercado de petróleo e, também, qual seria a próxima configuração de forças na cena internacional.

Há de se convir que, devido a laços históricos, comerciais e financeiros teremos, de um lado, Estados Unidos, Israel, Reino Unido, França e outras coirmãs europeias. De outro, o Irã, que acompanhado de um punhado de pequenas nações de seu entorno formará uma tendência, uma ideologia, um credo. Resta saber como se alinharão a Rússia e a China, ambas grandes clientes da principal divisa iraniana, o petróleo.

Em miúdos

Com esses contornos, passou da hora de o assunto ocupar as capas das revistas semanais e dos jornais diários com maior circulação, e escalar as manchetes dos telejornais. Especialistas em Irã deveriam ser ouvidos. Aqueles em Israel, também. Mas o que temos é um simulacro de imprensa, abrindo espaço e tempo para matérias que em algum momento chegaram a ser importantes, mas agora têm apenas importância secundária: a crise grega, o desemprego espanhol, a insolvência de Itália e Portugal, a corrida pela Casa Branca. São crises que seguirão seu curso natural, atenderão às conveniências do calendário eleitoral de cada país e não passarão muito disso.

E algumas das veredas que permanecem intocadas pelos argutos comentaristas de política internacional são:

** Qual o poderio militar de Israel e como deveríamos supor um ataque bélico israelense às instalações nucleares iranianas?

** A que ritmo avança o domínio da tecnologia nuclear por parte de Teerã e qual seria a sua reação, considerando sua histórica pregação antissemita e os alardeados torpedos verbais do presidente iraniano propondo que “Israel seja varrido do mapa”?

** Em que difere a capacidade de reação militar do Irã daquela que mostrada pelo Iraque anos atrás?

** Existiria espaço para alguma atuação da Organização das Nações Unidas visando postergar (ou diluir) ao máximo o conflito?

A imprensa internacional não tem sido econômica em alinhar o avanço do terrorismo internacional, de matriz religiosa fundamentalista, com o financiamento e a proteção do regime iraniano. E, a se confirmarem tais ilações, precisamos saber o que esperar de um conflito armado envolvendo Israel e Irã.

Quanto à nossa imprensa, sabemos que a cantilena das próximas semanas deverá ser a de unir forças para que José Serra assuma de vez sua candidatura à prefeitura de São Paulo e abra, desde logo, clareiras para 2014. Mas é importante destacar que a Folha de S.Paulo acertou em cheio quando alocou um correspondente fixo em Teerã, o talentoso Samy Ardghini, que, em poucos meses, tem conseguido trocar em miúdos para os leitores brasileiros o que é a realidade iraniana, seus valores culturais e os meandros de sua política.

Mas ainda é pouco.

https://www.observatoriodaimprensa.com.br/e-noticias/israel-e-ira-um-rastilho-de-polvora/

23 de fevereiro 2012

O reino da mediocridade

O que está acontecendo com nossos fins de semana? Temos a semana para ganhar o sustento pessoal e familiar, trabalhamos o horário nobre dos dias: todas aquelas horas em que o sol está firme no horizonte. Os restos do dia são dedicados ao repouso, tão necessário para refazer as energias a serem canalizadas para a jornada seguinte. E os vestígios do dia, essas poucas horas e momentos que sobram, passamos com quem amamos, nossos familiares, nossos amigos.

Chega então o fim de semana. Sábado e domingo, boa parte da população que ainda pode desfrutar do luxo de ter emprego, profissão ou apenas um meio de ganhar a vida finalmente pode desfrutar de dois dias para descansar e dar atenção aos que amamos. E o que fazemos, então? Boa parte desse “descanso” se passa diante da telinha mágica chamada televisão.

É da telinha que recebemos o passaporte para atravessar o mundo, ver suas guerras e revoluções, ser testemunha ocular de enchentes amazônicas, furacões norte-americanos, vulcões e tsunamis asiáticos. Da mesma telinha acompanhamos o jogo da vida real em que alguns assaltam bancos, sequestram pedestres, furtam idosos, incendeiam índios e mendigos na periferia das grandes cidades do mundo.

Será isso… descanso?

Gincanas culturais

Resta a opção da passividade absoluta, da leniência habitual com nossos valores pessoais, do arrastão da mais completa e torpe imbecilidade. Temos os programas dos canais abertos da tevê. E com eles todo o apelo pelo ridículo, pelo insano, pelo anseio de ridicularizar outras pessoas, gente como a gente. São os programas de auditório: Luciano Huck e Fausto Silva ocupando as tardes de sábado e domingo e contando com um arremedo de concorrência formada por programas do mesmo naipe, com um agravante: conseguem ser ainda mais ridículos que os que ocupam o pódio das maiores audiências do Ibope vespertino.

Todos, sem exceção, usam e abusam das chamadas ‘pegadinhas’, que são aqueles vídeos, alguns pura armação e outros nem tanto, em que pessoas simples protagonizam situações do mais completo ridículo, abordadas em praças e ruas, fazendo literalmente o papel que a mídia televisiva lhes impõe – o de ser ridículo o suficiente para fazer outros rirem de seus desatinos e ações muito pouco inteligentes. E se um cidadão mediano nacional tem altura regular de 1,65m a 1,80m, nessas pegadinhas são reduzidos a pouco mais de dois ou três centímetros de altura. Altura ética, bem entendido.

Parte expressiva da população brasileira desperdiçará seu bem mais precioso – o tempo – observando Fausto Silva fazer caras e caretas para seu cameraman, passar pela milésima vez pesadas descomposturas e anunciar seu circo de horrores de bolso, do tamanho exato para preencher as 3, 4 ou 5 horas em que o programa irá durar. Por outro lado, Huck encenará seu papel preferido – o de boneco de ventríloquo – com voz quase sempre empostada e fazendo o que mais gosta: posar de mecenas dos pobres e miseráveis, distribuindo casas e carros inteiramente reformados, tudo tinindo de novo, e focando ora a lágrima do pai de família que transformou o quarto e sala (sempre em péssimas condições de habitabilidade) onde vivia em uma casa classe média, ora em todos os eletrodomésticos e tevês de LCD. É em meio aos eufóricos agradecimentos de quem ganhou algo que os pontos de audiência sobem e a dignidade humana é aviltada, de maneira enviesada, mas é.

Como seria interessante que os programas fossem nivelados ao menos ao meio, nem tão baixo e nem tão alto. Entendo que dificilmente a população trocaria de bom grado um canal exibindo Michel Teló por outro em que a atração fosse a Orquestra Filarmônica de Berlim apresentando a Nona Sinfonia de Beethoven. E não trocaria por uma razão muito simples: tempo demais se investiu no apreço dos canais de televisão por números musicais em que o artista parece participar de maratona circense – levanta os braços, corre e salta, volta a levantar os braços à direita e à esquerda – e as letras das músicas trazem sempre apelos explícitos e com alto teor erótico. Bem pouco tempo se investiu na educação do ouvido popular para apreciar e se deixar levar pelos belos acordes, sons e arranjos que somente as Bachianas do genial Villa-Lobos ousariam ter.

Os programas poderiam reviver gincanas culturais bem ao estilo anos 1970, como O céu é o limite, apresentado na extinta TV Tupi por J. Silvestre, programas em que um tema central era objeto de perguntas e respostas e os temas variavam de eventos do Antigo Egito até a vida de Mozart, Galileu ou Carmem Miranda.

Goela abaixo

Faltam na tevê aberta programas que possam despertar na audiência jovem a descoberta de vocação para levar avante a vida adulta: quais os encantos da física e da medicina, da química e da astronomia? Quais os depoimentos de arquitetos, professores, filósofos e advogados bem sucedidos a compartilhar com milhões de jovens em idade de escolher uma vocação, uma profissão? Temos absoluta carência de programas que façam exclamar um jovem de 16 ou 18 anos: “Eu daria certo nisso!” ou “É isso que farei na vida!” Ao contrário do que muitos pensam, seriam programas com baixo custo de produção.

Já paramos para pensar quão interessante seria assistir numa mesma tarde de sábado ou domingo a entrevistas de quinze a vinte minutos com profissionais “bem sucedidos” em sua área de atuação”, como Adélia Prado, Ivo Pitanguy, Alberto Dines, Dráuzio Varella, Marina Colasanti, Fernanda Montenegro, Chico Buarque, Leonardo Boff, Elio Gaspari, Fernando Meirelles. E poderiam investir na produção de vídeos ilustrativos com a biografia de cada entrevistado.

Alguém já imaginou um quadro como o “Arquivo Confidencial”, em vez de ser pela enésima vez com Susana Vieira ou com o Cauã Raymond, fosse com Oscar Niemeyer ou com Affonso Romano de Sant’Anna? Ou com essa prenda maior da baianidade, Dona Canô? E se não com ela, por que não com seu filho-pavão Caetano Veloso? Ou, então, por que não uma entrevista com esta que é uma das mais emblemáticas cantoras da música popular brasileira, Maria Bethânia?

Dificilmente serei convencido que a indigência mental que habita nossa telinha mágica no fim de semana é devido à falta de opções. É mais fácil que o seja por falta de cultura, cidadania e/ou bom caráter por parte dos que têm a última palavra na hora em que se fecha a grade programação de nossa tevê aberta – que, a rigor, é uma concessão do Estado, embora não pareça, dada à tradicional leniência com o lixo televisivo que fazem descer goela abaixo de uma população que ousa sonhar com novas utopias e redobrada esperança no futuro.

A sensação que tenho, depois de passar um fim de semana assistindo à televisão brasileira, é a de ter ficado mais pobre espiritualmente, diminuído em minha condição de humano.

Não será a hora de dar um chega pra lá nessa mediocridade toda?

https://www.observatoriodaimprensa.com.br/tv-em-questao/o-reino-da-mediocridade/

03 de março 2012

Palavras acima de qualquer suspeita

As palavras são veículo do pensamento humano e também fonte de profundo desentendimento entre humanos. É uma dessas contradições paralisantes. Mas não se inventou ainda nada mais poderoso do que a força da palavra – seja escrita, falada, imagética. E é assim desde os primeiros entalhes rupestres de milhões de anos passados, em obscuras cavernas de nosso passado comum, até sua compactação em milhares de terabytes em minúsculas partículas de areia (chips) do Vale do Silício, na Califórnia.

Das gravuras rupestres às escandalosas alegorias pintadas (e ainda vivíssimas) nas casas de Pompéia, destruída pela erupção do Vesúvio no ano 79, e até os dias que correm, neste abril de 2012, quando mais que 800 milhões de seres humanos estão conectados na rede social conhecida como Facebook, a palavra continua sendo o signo, o símbolo, o meio condutor de pensamentos, sentimentos, aspirações e mais uma miríade de humanas emoções.

Existem palavras e palavras. Algumas conseguem cumprir sua missão e transmitem coisas assimiláveis pelo intelecto, outras expressam não mais que confusão mental, seja de quem as profere, seja dos que se deixam contaminar pelo espírito de uma época como esta em que vivemos. As palavras são expostas de forma despudorada, despidas de significado e não mais dizendo “coisa com coisa”.

É o caso dos políticos, em geral, e dos jornalistas, em particular. No caso dos políticos, tem sido prática cada vez mais recorrente ouvirmos declarações como:

** “Estou absolutamente convencido” – que significa na verdade dizer que “não estou nem um pouco convencido, ainda não tenho juízo de valor sobre o assunto”;

** “Sou inocente e nada tenho a ver com essa história, tenho um nome a zelar” – a significar que “até o momento consigo passar a mensagem de que sou inocente e saio ileso do imbróglio de que me acusam”, e também “um nome a zelar apenas e somente diante da opinião pública”;

** “Ainda não li os jornais de hoje, não vi o noticiário, depois que tomar conhecimento direi algo” – significa que “sei de tudo desde o momento mesmo em que o assunto começou a repercutir na imprensa, li o clipping antes de sair de casa, mas preciso de tempo para saber como devo reagir publicamente”;

** “Pelo nome e pela vida de meus filhos afirmo ter sido iludido em minha boa fé” – significa o mesmo que “agora que a situação vai de mal a pior resta apenas apelar para os melhores sentimentos de amor à família aos filhos como forma de conexão com a opinião pública, afinal, todos tem uma família ou filhos”;

** “Logo mais anunciarei minha renúncia ao cargo de forma irrevogável” – significa o mesmo que “produzirei um fato com potencial midiático instantâneo e ao fim e ao cabo terminarei por não renunciar ao cargo”;

Como vestal

Agora o caso dos jornalistas – não a maioria, que não costuma contar com formidável aparato comunicacional, e sim a minoria detentora da propriedade dos jornais impressos de maior tiragem diária, das rádios mais aquinhoadas com patrocínio tanto público quanto privado, e das emissoras de tevê de maior audiência; uma minoria que, ciente do poder ostensivo e intimidatório que detém, faz as vezes do Criador da Realidade, transforma versões em fatos irrefutáveis e em meros rumores o que desde sempre era a mais escancarada das verdades factuais.

É essa minoria que consegue o milagre de transmutar mau-caratismo em quintessência de beatitude, transformar empresário de negócios escusos, aliciador de agentes públicos para redes de corrupção e chantagista por opção de conduta em fonte jornalística acima de qualquer suspeita, brindado com burocráticas declarações off the record, saudado como “ouvido de uma autoridade que priva da intimidade do primeiro escalão do governo”, reverenciado como “qualificado assessor”, “felpuda raposa política”, “servidor público com irretocável biografia”.

E tudo funciona às claras, sem qualquer pudor de estar tramando contra a ordem natural das coisas: primeiros os fatos precisam acontecer para só então receber repercussão. Qual regente de personagens e instrumentos, algumas personalidades se sabem abrigadas pelo imenso aparato de proteção que tão somente a propriedade de um jornal ou de uma revista semana tradicional, capitalizados e com enorme circulação nacional, pode conferir ao seu proprietário e aos seus muitos prepostos.

É deste pântano de interesses mesquinhos, onde pontifica a musgosa ética do “faça o que eu digo e não o que eu faço”, que parecemos viver em realidades paralelas. Realidades em que suposto grampo telefônico de não mais que cinco minutos entre um senador da República e o presidente da Superior Tribunal Federal, grampo este que nunca apareceu nem no mundo dos vivos nem nos mundos dos mortos, é capaz de ser capa da principal revista semanal de informações do país, além de preencher uma dezena de suas páginas centrais e fazer o leitorado concluir que vivemos em um “Estado policial” e não em um Estado democrático de direito.

Mas, enquanto isso, sempre dentro de uma ética lasciva, grampos telefônicos devidamente autorizados pelo Poder Judiciário do país, e que somam mais de 3 mil horas de gravações, mesmo sendo vazados a torto e a direito a todos os meios de comunicação, trazendo à luz do dia personagens graúdos da política, da justiça, do empresariado e da imprensa, não chegam a ocupar reportagem de duas páginas, embora estejam potencialmente revestidos com o que chamamos de valor-notícia.

Capa de revista? Nem pensar. É mais fácil ressurgir das cinzas um escândalo de estimação, daqueles das antigas, sem qualquer fato novo, salvo o de servir como pressão para que a instância máxima do Poder Judiciário exare sua sentença sobre o assunto. E, de quebra, manter a aparência de vestal. Embora, como se diz em algumas regiões do Brasil, em estado interessante. Melhor, grávida.

Mágica descoberta

Nas últimas semanas chegamos à conclusão de que vivemos e ainda assim não veremos tudo a que tínhamos direito de ver. Os grampos ilegais são excelentes para a imprensa desde que contenham material demolidor contra a reputação e o trato bem pouco republicano pilhado pelo governo que não aprovamos e não admiramos. Os grampos autorizados pela Justiça são péssimos quando flagram “grampeadores profissionais” em conversas típicas do submundo do poder e das ambições humanas e reduzem a pó de mico figuras que foram construídas com a argamassa midiática para servirem como modelos de retidão de caráter, insignes exemplos de conduta ilibada, luminares de um novo ordenamento moral para um Estado nacional em avançado estado de putrefação de suas instituições basilares e anunciadores de que vivemos em um país… em petição de miséria ética.

E, então, um dia os mágicos-jornalistas, aqueles que tinham conhecimento dos erros de todos os demais, menos dos seus próprios, descobrem que nem sua cartola era real e muito menos seus truques conseguiriam cativar a atenção de mais ninguém. A mágica de escrever reportagem com riqueza de detalhes, segundo a segundo, palavra a palavra, frase a frase, recriando palavreado recheado de intimidade como a despistar pensamentos e intenções reais, ficou a descoberto.

E nem a liberdade de imprensa será uma vez mais invocada em vão: esta liberdade é por demais sagrada para servir de mero abrigo a sacripantas.

https://www.observatoriodaimprensa.com.br/jornal-de-debates/palavras_acima_de_qualquer_suspeita/

19 de abril 2012

Sem interesse pelos escândalos

Tempos estranhos esses em que vivemos. Com uma imprensa sempre ávida por escândalos de corrupção, roubalheira e malfeitos, eis que temos a principal revista semanal de informações, Veja, editada pelo Grupo Abril, abordando como principal tema de capa de suas quatro últimas edições assuntos no mínimo amenos, para não dizer insossos do ponto de vista do valor-notícia, da noticiabilidade.

Desde 29 de fevereiro de 2012, quando a Polícia Federal, em conjunto com o Ministério Público Federal em Goiás e com apoio do Escritório de Inteligência da Receita Federal, deflagrou a Operação Monte Carlo, tendo por objetivo desarticular organização que explorava máquinas de caça-níqueis no estado de Goiás, o Brasil que frequenta a grande imprensa não fala de outra coisa: CPI do Cachoeira, gravações comprometedoras envolvendo o senador Demóstenes Torres, o governador goiano Marconi Perillo, a construtora Delta e uma penca de personagens menores, deputados federais, delegados de polícia, arapongas, funcionários públicos. E a cúpula da revista Veja em Brasília, especialmente o jornalista Policarpo Junior.

No rastro dos meliantes aquosos encontramos de tubarões a bagres. Confidências de alcova, palavreado de quinta categoria recheado por imagens escatológicas, tráfico de influência na modalidade “livre, leve e solta”, somas vultosas entrando em várias contas e reduzindo a pó reputações até bem pouco não apenas acima de qualquer suspeita como também incensadas como próceres da moralidade pública, formidável contraponto midiático “a tudo o que aí está”, e certeza de opinião abalizada sobre todo e qualquer assunto que afete à sociedade brasileira – da luta contra os malfeitos na máquina governamental central, federal, até a defesa sempre insustentável da quimera de uma democracia racial que jamais existiu no Brasil, mas que sempre encontrou abrigo nas principais revistas e jornais do país.

Vitrine semanal

A operação Monte Carlo é como suntuoso banquete para 700 talheres. Banquete inesperado e farto para todos os que se acreditam e autodenominam “jornalistas investigativos”. A operação consiste no cumprimento de 82 mandados judiciais, dos quais 37 mandados de busca e apreensão, além de 35 mandados de prisão e 10 ordens de condução coercitiva em cinco estados.

Não obstante a junção de tantos ingredientes e condimentos em uma mesma vasilha que se leva ao fogo, fato é que nossa principal revista semanal de informação – Veja –, decantada em verso e prosa como detentora do jornalismo de mais elevada qualidade jornalística, guardiã de tudo o que já se escreveu sobre ética, moral e bons costumes, pois bem, o carro-chefe da Editora Abril não encontrou qualquer interesse jornalístico no bojo da Monte Carlo, qualquer valor-notícia nas muitas quedas da cachoeira de crimes, ilicitudes, ilegalidades e contravenções que vêm sendo revelados à sociedade brasileira a cada dia e a cada hora. Ao menos o assunto não chegou perto de merecer uma daquelas explosivas capas da revista, sempre tão pródiga em brandir o cassetete da justiça e da moral sobe qualquer sinal de fumaça de corrupção.

Observamos, com misto de perplexidade e desencanto as quatro últimas reportagens de capa da revista Veja. São elas:

1.Edição 2264, de 11/4/2012, capa com “Os filhos da inovação”, tratando dos jovens brasileiros na “vanguarda da revolução digital”. Se optasse por levar à capa uma bela foto do Mosteiro dos Jerônimos e da Torre de Belém, em Lisboa, não faria grande diferença na vida ordenada do sistema solar;

2.Edição 2265, de 18/4/2012, capa com “Mensalão – A cortina de fumaça do PT para encobrir o maior escândalo de corrupção da história do país”. É como se por trás da cortina brilhasse a questão de fundo: “Por que abandonar nosso querido escândalo de estimação por outro que… ainda nem disse a que veio?”;

3.Edição 2266, de 25/4/2012, capa com “Do alto tudo é melhor”, tratando da relação entre altura das pessoas e sucesso na vida. Se decidisse levar à capa uma milionésima imagem do Santo Sudário talvez conseguisse maior interesse por parte de seus leitores. Ao menos, as pessoas prejudicadas verticalmente, como nos ensina os politicamente corretos a denominar as pessoas de baixa estatura, não se sentiriam minimamente ofendidas com tamanha falta de assunto, ou melhor, desfaçatez mesmo;

4.Edição 2267, de 2/5/2012, capa com “As lições das chefonas”, tratando da ascensão das mulheres na vida profissional. Essa reportagem de capa deve ter vencido por alguns míseros pontinhos o outro tema a ser alçado à sua vitrine semanal: a vida e a obra de feminista e compositora brasileira Chiquinha Gonzaga. Talvez fosse dedicado espaço para a candente letra de “Abre Alas”.

Edição imperdível

Não precisa ser doutor honoris causa de Xique-Xique, no interior baiano, para perceber que as quatro capas tentam desfazer esse clima de mal-estar e vívido constrangimento que veio a lume com a revelação de que dezenas e dezenas de ligações telefônicas legalmente gravadas tinham como dialogantes o capo Carlinhos Cachoeira e o chefe da sucursal de Veja em Brasília, Policarpo Junior. A própria revista não hesitou em ver no teor das conversas, bem pouco jornalísticas por sinal, uma nova modalidade de exercer as artes de um vibrante e dinâmico jornalismo investigativo: jornalismo-criminoso, jornalismo-ao-arrepio-da-lei.

Chegam a ser patéticas as muitas investidas da revista visando dar cores de legitimidade ao que nasceu de forma espúria, fruto de delinquência a granel, reunindo em um mesmo affair contraventor dissimulado, altas autoridades do Poder Legislativo e dublês de empresários com escroques, sob a solene inércia de baluartes de nossa grande imprensa, aquela que acredita poder debitar tudo, do lícito ao ilícito, na conta da liberdade de expressão. Não causaria estranheza se legiões de leitores da publicação ingressarem nos tribunais com ações por perdas e danos, por terem comprado como fruto de trabalho investigativo o que não passava de gravações ilegais de conversas privadas, violação do direito humano comezinho à privacidade. Em melhor português, arapongagens.

Mesmo para o leitor ingênuo, parente consanguíneo da velhinha de Taubaté, algumas questões começam a ser formuladas e passam a exigir respostas que não agridam o senso comum:

** Quem pautava quem? A revista pautava Cachoeira ou Cachoeira pautava a revista?

** Como discernir da vasta sequência de escândalos publicados, com afinco, semana a semana, quais eram reais e quais eram pré-moldados, fabricados sob medida para constranger governos, ministros, autarquias e órgãos públicos?

** Não seria o caso de se proceder a uma prova dos noves, qual seja, submeter as matérias publicadas por Veja com os áudios legalmente fornecidos pela Operação Monte Carlo, relacionando os argumentos escritos com os contextos, as falas e as estratégias criminosas abordadas na conversas do submundo de Carlinhos Cachoeira?

** Desde quando tem sido este o expediente utilizado pela revista Veja para influir na vida política e social do Brasil? Um jornalista pode ser comparado a uma autoridade policial dentro de um Estado de direito? É lídimo construir reportagens (e conspirações) de natureza política a partir de informações obtidas de forma criminosa?

** Notícias plantadas, ardilosamente publicadas e tendo como origem pessoas que se locupletam com vantagens indevidas e que fazem do crime uma profissão, merecem livre e completo acesso aos meios de comunicação em uma sociedade democrática?

** Estarão em pleno funcionamento no Brasil outras redes criminosas que conseguem pautar órgãos de comunicação para atender aos seus interesses, sempre escusos e inconfessáveis, e que ainda não foram objeto das garras da lei?

Algumas dessas questões têm tudo para compor uma edição especial – e imperdível – de qualquer revista de informação semanal que se preze. Porque existem fronteiras que não podem nem devem ser rompidas.

https://www.observatoriodaimprensa.com.br/imprensa-em-questao/sem_interesse_pelos_escandalos/

01 de maio 2012

Em defesa do corporativismo

A imprensa tem longa experiência na cobertura de Comissões Parlamentares de Inquérito. Em temporada de CPI é patente o manancial (pensei em escrever cachoeira) de informações a preencherem páginas de jornais e revistas, em casos que a imprensa elege como “por demais clamorosos”; cadernos especiais são criados, assim como é inventada uma logomarca.

O assunto é mais ou menos reverberado nos meios de comunicação de acordo com o grau das pessoas e instituições investigadas. Em um hipotético termômetro de interesse midiático podemos inferir que se o investigado é o governo federal – principalmente os dos últimos quadriênios – é certeza absoluta de que donos de jornais e revistas, redatores-chefes, editores e colunistas de plantão atuarão como se tivessem mandato parlamentar, engrossando ainda mais a lista de investigadores, elencando diariamente novos alvos de investigação, preparando conexões ou meras ilações entre esse e aquele personagem, esta e aquela empresa.

Formam, por assim dizer, o esquadrão midiático voluntário em apoio aos trabalhos da CPI. Não são remunerados, ao menos diretamente, por seu trabalho que, longe de ser gracioso, é regiamente pago, mas de maneira indireta, através da minutagem que os temas de sua predileção terão na escalada de telejornais, do espaço nas capas e cadernos de jornais e revistas.

O nosso e o dos outros

O braço midiático das CPIs sabe muito bem que não existe almoço grátis. E seu trabalho investigativo é tão isento quanto a defesa que faz o agronegócio da preservação do meio ambiente, propugnando pesadas multas pecuniárias a seus congêneres desmatadores. Muito ao contrário, a imprensa não é isenta e chama para si o direito de oferecer à opinião pública quem são os mocinhos e os bandidos, antes, muito antes de a CPI se encaminhar para seus desdobramentos finais.

É prática de boa parte da imprensa pecar por excesso de protagonismo: publica avalanchas de sinais como se fossem evidências robustas de culpabilidade. E, ao mesmo tempo, peca por excesso de omissão: deixa de publicar o que possa estar em contradição com o veredicto esposado pela publicação, ou pela rede de televisão. Em algumas CPIs a omissão chega a ser criminosa. É como se estivessem permanentemente em sala de edição, cortando o que não deve vir a público e criando a realidade que precisa vir à luz.

A Comissão Parlamentar de Inquérito recém instalada tem em sua essência algo que destoa por completo das muitas que lhe antecederam. É o ineditismo de, pela primeira vez neste país, a imprensa vir a se tornar alvo de investigação. E, então, temos um rosário de coisas inéditas. Primeiro, não é a imprensa que está na bica para ser investigada. É, tão somente, o jornalista Policarpo Junior, da sucursal da revista Veja, em Brasília. Mas, para a imprensa, é seu teste ético de força: devemos todos nos posicionar em defesa de Veja ou deixá-la aos humores, talentos e habilidades dos parlamentares que atuam na CPI?

É, certamente, o caso mais escancarado de corporativismo jamais visto no país – isto para resgatar a frase tantas vezes usada de maneira jocosa pelos luminares que pontificam na mídia. O que deveria se circunscrever a uma única revista semanal, terminou por transbordar e se transformar em bandeira de luta bem ao estilo “mexeu em um, mexeu em todos”. E, no entanto, não faz muito o corporativismo era o inimigo número 1 da imprensa, não importando se surgisse na defesa de desembargadores graduados de tribunais superiores, nas direções gerais da banca financeira ou nas presidências das empreiteiras, menos ainda se surgisse nas hostes da segurança pública. Agora, vemos que o corporativismo mau é aquele praticado pelos outros, o nosso pode até parecer, mas nem mesmo chega a ser corporativismo. Atende por outro nome: defesa da liberdade de imprensa.

Direito de condenar

Ainda assim, é uma liberdade de imprensa seletiva. O império midiático não se fecharia em copas em defesa de jornalistas que fossem flagrados em conversas como as reunidas nos propalados 200 grampos telefônicos, obtidos com autorização judicial, de conversas entre o editor de Veja e o notório meliante Carlos Cachoeira. Alguém, em sã consciência, imaginaria o movimento da Editora Abril em franca ação de autodefesa, angariando flamejantes editoriais de O Globo e defesas não menos enfáticas de sua ética jornalística por parte de jornais como o Estado de S.Paulo e a Folha de S.Paulo? Seria crível ação dessa envergadura se atropelados em escutas telefônicas estivessem jornalistas como Mauro Santayanna, Mino Carta e Ricardo Kotscho?

A resposta é não por dois motivos. Primeiro, porque seria impensável que um desses três decanos da imprensa brasileira protagonizassem conversas de tão baixo calibre, próprias do submundo do crime organizado. Segundo, porque ao invés de serem defendidos, seriam condenados sem dó nem piedade pela grande imprensa. Direito de defesa? Apenas para os nossos. Para os demais, reservamo-nos o direito de acusar, condenar e zelar pelo fiel e rigoroso cumprimento da pena.

As próximas semanas serão reveladoras de como a imprensa se porta quando é ela que cobre a CPI – e quando a própria passa a ser coberta por uma CPI. Este é o ponto.

https://www.observatoriodaimprensa.com.br/jornal-de-debates/em-defesa-do-corporativismo/

15 de maio 2012

O STF na encruzilhada

Nunca houve um processo como o mensalão. Seria um bom nome de filme, ainda a escolher o gênero. Se considerado algo sério, seria documentário político, a exemplo do clássico Z, do grego Costa-Gavras; se considerado comédia, poderia ser um flagrante dos costumes políticos do Brasil: acusações de uso de caixa 2 em campanhas políticas, de compra de apoio parlamentar para dar sustentação ao então ocupante do Palácio do Planalto, Luiz Inácio Lula da Silva, vitrina para exercício de pendores político-partidários da quase totalidade dos veículos que se abrigam sob o manto da “grande mídia” brasileira. Os personagens são parlamentares, dirigentes partidários, marqueteiros, burocratas da administração federal e servidores públicos, dos mais aos menos graduados. As tramas envolvem tentativas (frustradas) de impeachment do presidente Lula, sessões de tiroteios verbais em Comissão Parlamentar de Inquérito e extenso caudal de matérias publicadas na revista Veja e nos jornais Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo e O Globo. O cenário que fica em nossa memória coletiva é o de suas últimas locações: o antes sóbrio recinto do nosso Supremo Tribunal Federal.

Nunca houve um processo como o mensalão. Alvo de pressões da grande imprensa, que tem feito caras e bocas ao longo de não menos de sete anos, primeiro para provar a existência do processo em si mesmo, depois para influir decisivamente na condenação máxima de suas dezenas de réus. Alvo de pressões de ministros da Suprema Corte, usando-se para tanto os mais variados artifícios: da suspeição de que ministros do STF foram nomeados com o intuito de – na hora oportuna – exarar seu voto pela inocência dos réus ao vazamento de conversa privada entre o ministro Gilmar Mendes, ex-advogado-geral da União na gestão Fernando Henrique Cardoso, com o ex-presidente Lula, tendo como testemunha Nelson Jobim, ele próprio ex-ministro do STF e ex-ministro da Defesa na gestão Lula/Dilma Rousseff. Conversa esta que apresenta conformidade apenas quanto à data, local e personagens presentes, mas cujas versões diferem completamente quanto ao seu conteúdo: Lula e Nelson Jobim desmentem a versão de Mendes.

Dessa inconfidência do ministro Mendes, ficamos sabendo ainda que o ex-presidente Lula lutava por influir na postergação da data do julgamento do processo, e que faria contatos com os ministros do STF “mais chegados a ele” para propor a prorrogação, além de haver emitido juízo de valor sobre o relator do processo no Supremo, o ministro Joaquim Barbosa, que na versão de Mendes seria visto por Lula como “um complexado”. Nessa reta final, o processo assume ares de comédia.

Cortina de fumaça

Nunca houve um processo como o mensalão. Alvo de pressões inéditas e bem pouco usuais partindo do presidente Corte, ministro Ayres Britto, e recaindo sobre o ministro-revisor do processo, Ricardo Lewandowski. As pressões se materializaram de maneiras diversas. Da decisão colegiada de como seria realizado o julgamento e montado seu cronograma, a fazer com que o trabalho do ministro Lewandowski obedecesse a esse cronograma. Isso, por si só, já é prenúncio robusto de que o julgamento assume mais cores políticas e partidárias do que judiciárias e… técnicas.

As pressões do presidente Ayres Britto chegaram ao ponto em que sua advertência, por escrito, ao revisor Lewandowski foi levada primeiramente ao conhecimento da grande imprensa e só depois ao do próprio ministro, situação esta devidamente anotada pelo destinatário em sua resposta ao presidente da Corte. As pressões para que Lewandowski desse por concluído seu voto de revisor levaram em conta a possibilidade de o ministro Cezar Peluso vir a se aposentar, ele que é visto pela cobertura midiática como “voto francamente favorável a penas duras aos réus do mensalão”, como também “elogiado por sua brilhante trajetória de juiz e refinados conhecimentos jurídicos”. No caso de o ministro Peluso ser compulsoriamente aposentado (por razão de atingir a idade limite de 70 anos nos primeiros dias de setembro), e em havendo empate nos votos dos magistrados, o voto faltante teria que ser necessariamente em favor da absolvição dos réus.

Nunca houve um processo como o mensalão. Dificilmente na história de nosso Supremo Tribunal Federal poderíamos encontrar um processo que guarde alguma similitude com o clima, a ambiência, as pressões e a natureza do presente processo. É público e notório que para a grande mídia o julgamento será apenas pro forma, uma vez que em sua visão todos os réus já chegaram condenados ao STF. A mídia prefere pugnar para que o julgamento seja eminentemente político e não técnico, como seria de se esperar. Se, por um lado, os julgadores não deveriam ser alvo de pressões por parte dos réus e sua legião de defensores, quase sempre indevidas e espúrias em sua natureza, por outro, não deveriam se sujeitar a receber pressão dos meios de comunicação. Estes buscam lançar cortina de fumaça nos assuntos objeto de Comissão Parlamentar Mista de Inquérito que investiga o esquema de corrupção do contraventor Carlos Cachoeira, com tentáculos no Congresso Nacional (senador e deputados federais), no Poder Executivo (governadores de Goiás e do Distrito Federal), em empreiteira de grande porte (com sede no Rio de Janeiro e obras por todo o país), além de empresas de comunicação (jornalista da Editora Abril).

É no contexto da teoria da “cortina de fumaça” que ao palco da CPMI poderá ser convocado a depor o dono do grupo Abril, o empresário Roberto Civita, e Policarpo Junior, experiente jornalista da revista semanal de informação de maior tiragem no Brasil, a Veja. Jornalistas da revista Época, do grupo Globo, poderiam ser também convocados.

A técnica e a política

Nunca houve um processo como o mensalão. Não é usual um único processo arrolar 38 réus, envolvendo pessoas com e sem foro privilegiado, crimes os mais diversos, alguns com indícios e evidências de culpabilidade, outros sem um nem outro. Também não é usual que um processo nascido em ambiente político conturbado tenha seu julgamento em pleno ano de eleições, em um tempo em que as campanhas eleitorais são cada vez mais marcadas pela importância avassaladora das imagens e dos áudios e, dessa forma, oferecendo farto material a ser usado nos horários destinados à difusão de propaganda eleitoral e sempre tão valoradas pelos embates partidários em sua eterna luta pelo poder.

Nunca houve um processo como o mensalão. Porque, seja qual for o veredicto, a Suprema Corte terá sua credibilidade colocada em xeque. Se absolver os réus, não faltarão vozes na grande imprensa para dizer que 8 dos 11 magistrados chegaram ao STF pelas mãos dos presidentes Lula e Dilma Rousseff e, portanto, se sentiram impelidos moralmente a absolvê-los. Se condenar, não faltarão vozes – na blogosfera principalmente – dando conta de que os ministros do Supremo preferiram ficar bem com a grande mídia, fazendo o aspecto político prevalecer sobre os critérios técnicos.

Definitivamente, o Supremo Tribunal Federal poderia ter evitado boa parte do roteiro que ora se anuncia. E priorizar, acima de tudo, a defesa de suas prerrogativas constitucionais como instância máxima da administração da justiça no Brasil.

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28 de junho 2012

O que as revistas poderiam aprender com Sweig


asta um rápido giro pelo que é notícia para se ter ideia da falta que faz um jornalismo minimamente decente, conectado com a realidade, desses que preza o respeito à sua essência, a busca da verdade. Porta-vozes de realidade enviesada, atravessada e atravancada é o que nos vem à mente quando folheamos rapidamente em banca de jornal, mas sem comprar, as duas principais revistas semanais do Brasil – Veja e Época.

A quem interessa manter a imagem autossabotadora de um país que só dá certo se for localizado no futuro? Não seria melhor para o país se as revistas iniciassem um saudável exercício de autocrítica.

Está claro que as recentes edições das duas semanais são resposta ao discurso do ex-presidente Lula da Silva que, mesmo um tanto atrasado, clama por um debate aberto sobre a necessidade de regulação de nossa mídia, algo previsto desde 1988 em nossa Constituição e até hoje, 26 anos depois, ainda sem regulamentação. Lula não é de fazer gracejo com coisa séria. O que Lula disse habita corações e mentes de intelectuais e acadêmicos, lideranças de movimentos sociais, parte considerável dos chamados formadores de opinião – não aqueles que recebem contracheques das tradicionais empresas de comunicação do país. É um debate já travado nos Estados Unidos há décadas, no Reino Unido, na França. E também em países vizinhos como Argentina, Equador e Venezuela.

Veja, do grupo Abril/Civita, continua apostando alto no reles desmerecimento do Brasil, na trucagem de fatos e informações, e na manipulação de seus leitores para que tirem o brilho da Copa e, com isso, o brilho do país no cenário internacional.

A capa de Veja (edição 2375, de 28/05/2014) é um primor de jornalismo aloprado: cria-se um personagem para representar o alter ego dos donos da revista e, como se podia esperar, não dá outra: o Brasil é um país atrasado, arcaico, cartorial, pobre, miserável, com uma população mal educada, com péssimo sistema de saúde, um povo preguiçoso, um governo inepto, um país que fosse escrito a lapiseira precisava ser apagado com a borracha importada do Grande Irmão do Norte – este sim, o país dos sonhos dos Civita e de boa parte da redação de sua revista em marcha batida para o declínio total e irreversível.

E a derrocada de Veja acontece sem que precise de qualquer contra-ataque do governo. Não se tem notícia que um dos grandes anunciantes do país, o governo federal, tenha sequer ameaçado deixar de anunciar em Veja. E podia. Mas não faz. Além da migração de público de plataforma impressa para plataforma virtual, do papel para o computador, fenômeno mundial que vem desde fins dos anos 1990, o que bate os pregos e entorta as pontas do ataúde de Veja é a sua miopia crônica em se recusar a praticar o bom jornalismo que lhe fez a fama, aquele que vai dos anos 1960 aos 1980. Hoje, Veja não passa de panfleto espectral de tempos áureos que se recusam a voltar para a casa dos Civita.

Espelho fiel

Época (edição 834, de 26/05/2014), do grupo Globo/Marinho, também segue o caminho pantanoso, e sem volta, que sua concorrente Veja. O país chamado Brasil só é bom se continuar a ser indefinidamente “o país do futuro”, aquele profetizado ainda nos anos 1940 por Stefan Sweig. A reportagem de capa daquela edição é uma farsa do início ao fim. A forma adotada para desancar o país que tem feito a fortuna dos bilionários Marinho é situá-lo em um futuro 30 anos à frente, onde tudo é bom e onde escorre continuamente o maná do leite e do mel. É um acinte chamar a matéria de reportagem.

A publicação das Organizações Globo assemelha-se a panfleto político contra o governo atual e um reforço a mais em sua campanha para influenciar nos destinos do país. Mas o que deixa ver é um imenso senso de frustração com o progresso que o Brasil alcançou nos últimos anos: 6ª ou 7ª economia do planeta, mais efetiva política de distribuição de renda do mundo, sede da Copa do Mundo 2014 e das Olimpíadas 2016, mais de década cumprindo com metas de inflação, ainda sem nenhuma necessária lei de regulamentação da mídia.

Qual a moral de uma empresa como a Globo de se mostrar infeliz com o país que temos, de apontar o dedo para mazelas sociais existentes, algumas inventadas outras em maior parte?

O que é a Globo, afinal? Vamos lá: apoiou o golpe de 1964. Está nas capas de seu O Globo dos dias que vão de 25 de março a 25 abril de 1964. Documentos recém-liberados pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos mostram além do apoio a complacência de Roberto Marinho aos ditadores que sequestraram nosso país em 1964 – Castelo, Médici, Costa e Silva, Geisel e Figueiredo.

É difícil esperar que uma empresa assim, por mais abonada e bilionária que seja, possa conviver com sinceridade e senso de missão em um regime democrático. A Globo foi condenada, por decisão unânime de uma junta de auditores fiscais da Receita Federal do Brasil, a pagar R$ 615 milhões em 2006 por ter se beneficiado de uma fraude fiscal nas Ilhas Virgens Britânicas. Corrigido hoje, esse valor ultrapassaria R$ 1 bilhão. Existe até campanha nas redes sociais a favor que a empresa dos Marinho apresente o Darf comprovando o pagamento do que é devido à Receita. Do que deve ao Brasil.

Não fica difícil perceber o que querem Veja e Época. Que o Brasil seja imensa fazenda agrícola comandada a ferro e fogo por capatazes bem escolados e a população miserável receba o que lhe é devido por direito, a miséria, já que justiça é dar a cada um o que é seu. No mais, assumem partidarismo político que sempre tiveram, mas que se torna mais explícito que nunca.

Recomendo que os cabeças dos clãs Civita e Marinho se reúnam uma tarde dessas e se ponham a refletir sobre o seguinte trecho da carta que o escritor alemão Stefan Sweig (1881-1942) escreveu pouco antes de cometer suicídio, em 1942, em Petrópolis:

“Antes de deixar a vida por vontade própria e livre, com minha mente lúcida, imponho-me última obrigação; dar um carinhoso agradecimento a este maravilhoso país que é o Brasil, que me propiciou, a mim e a meu trabalho, tão gentil e hospitaleira guarida. A cada dia aprendi a amar este país mais e mais e em parte alguma poderia eu reconstruir minha vida…”

O que falta a esses poderosos clãs é exatamente o que nunca faltou a Sweig: demonstrar gratidão ao Brasil por tudo o que país fez e faz por eles; reconhecer que o Brasil é realmente um país maravilhoso; expressar a satisfação por terem encontrado no Brasil guarida gentil e hospitaleira; aprender com Sweig que a cada dia se pode amar o Brasil mais e mais; e, finalmente, entender que no Brasil, mais do que em parte alguma do mundo, poderia alguém reconstruir a vida, mesmo e vindo de uma Europa arrasada pela guerra, como foi o caso do casal Stefan e Lotte Sweig.

O jornalismo de nossas semanais não deixa de ser uma forma de suicídio – aquele que mata a essência do bom jornalismo –, um espelho fiel da realidade.

https://www.observatoriodaimprensa.com.br/feitos-desfeitas/o_que_as_revistas_poderiam_aprender_com_sweig/

4 de junho de 2014

Sob os olhos do mundo

É grande o impasse em que se encontram o Reino Unido – que ameaça pisotear a Convenção de Viena, que trata do direito semissagrado do asilo por motivação política – e a figura emblemática de Julian Assange, o mais renomado enfant terrible dos últimos decênios, somente igualável em apelo midiático a ícones da contracultura dos tão tumultuados quanto férteis anos 1960-70, como Bob Dylan, Jim Morrison, Janis Joplin e Joan Baez.

Assange deseja partir para o Equador, mas o Reino Unido deseja que ele siga direto para a Suécia. A Suécia, por sua vez, precisa apenas vê-lo para, numa subserviência constrangedora, enviá-lo aos Estados Unidos. E nos Estados Unidos, o que o passado lhe reserva? Um breve cubículo prisional na base militar de Quantico (se ele tiver sorte) ou Guantanamo (se a sorte deixar de lhe sorrir), uma sentença judicial condenando-o à prisão perpétua (se continuar com sorte) ou à pena de morte (se o sorriso da sorte não passar de mero lamento).

Ninguém mais ouvirá falar das duas senhoras suecas que se disseram vítimas do Assange estuprador. Os 81 dias que o governo do Equador levou para lhe conceder asilo serão menos que nota breve no rodapé da história do ativista australiano e fundador do WikiLeaks. Permanecerão para sempre na história desse primeiro decênio do século 21 as lutas de Julian Assange, o impacto da revelação de segredos de vários Estados e a maneira como a principal potência ocidental atuou em desfavor de Assange e do direito da livre circulação de informação – ou, como muitos preferem chamar, da liberdade de imprensa.

Muito além da situação em que se encontra o ativista, a novidade é que os governos já não estão seguros de que manterão seus cidadãos na ignorância. E isso nada tem a ver com Julian Assange residir agora na embaixada do Equador em Londres ou que venha algum dia engrossar as estatísticas prisionais dos Estados Unidos. O que não podemos esquecer é que ingressamos todos nós, governos e povos, em uma nova fase da comunicação política. E isso não tem muito a ver com a revelação de segredos, incontinências verbais ou meras fofocas que circulam em bastidores dos processos decisórios governamentais. Mas tem tudo a ver com a percepção de que aquilo que sempre os governos buscaram ocultar do conhecimento público se espalha como rastilho de pólvora por um canal que escapa aos aparatos de poder. E este canal pode ser visto como a força dos meios de comunicação que utilizam as plataformas digitais, acessíveis em computadores, notebooks, netbooks, tablets, smartphones.

Corações e mentes

Assange abriu a caixa de Pandora da política internacional tal como ela é, em estado bruto, desvelando jogos de pressão na maioria absolutamente indevidos; alvejando como desinfetante questionáveis trocas de favores; jogando holofotes sobre a forma como interesses subalternos conseguem ascendência sobre aqueles que realmente privilegiam a proteção e a promoção do bem comum; desnudando por inteiro os meandros da fábrica de versões oficiais em sua até então bem sucedida tentativa de manipular as decisões e os fatos delas decorrentes.

Essa caixa de Pandora parece longe de ser fechada – o vazamento de informações sobre iniciativas, políticas e ações dos governos independe da existência física do fundador do Wikileaks. É que, como em qualquer esfera da atuação humana, continua em plena vigência a percepção assertiva de que “a cada ação corresponde uma reação”. E as ações que os governos tomaram para silenciar e desacreditar a organização Wikileaks, com os Estados Unidos na vanguarda, seguido por algumas nações europeias, geraram movimento muito mais amplo, abrangente, inclusivo e com características planetárias – talvez o primeiro grande movimento organizado em termos de cidadania mundial a utilizar os meios de comunicação virtuais e trafegando livres, leves e soltos por gigabytes de infovias planeta afora.

É quando surge no horizonte o Anonymous. E o que é o Anonymous? Uma possante e popular rede hacker que se insurgiu contra os que passaram a combater o Wikileaks e seu fundador. Anonymous coordenou centenas de ataques virtuais a empresas e instituições que se engajaram na cruzada dos governos contra a fonte dos vazamentos de documentos oficiais – dentre aqueles Visa, MasterCard, PayPal e o banco suíço Post Finance, que foram pressionados a fechar as contas do Wikileaks, além da gigante norte-americana Amazon, que removeu de seus servidores o domínio do Wikileaks.

Como há um desejo por liberdade em tempo integral, uma busca frenética por uma causa à qual dedicar a vida, milhares de voluntários de dezenas de países utilizaram o Facebook e o Twitter para promover a instituição do ousado australiano, mostrando assim uma força nunca antes vista em termos de mobilização de corações e mentes na defesa não de uma organização, menos ainda de um indivíduo, mas de uma ideia. A ideia de que todos têm o direito de saber as reais motivações e as ações dos governos que agem em seu nome.

Livre trânsito

Não tardou para que os voluntários e simpatizantes do Wikileaks no Facebook ultrapassassem a marca do primeiro milhão de pessoas e chegassem a contar com um novo simpatizante a cada segundo – ou seja, 86.400 novos amigos a cada 24 horas.

Por volta das 10h de domingo (19/8), na embaixada do Equador em Londres, Julian Assange faz um pronunciamento espetacular, desses em que o personagem sabe que está falando para além do aqui e do agora, lançando ideais em forma de palavras para o futuro. Destaco suas palavras iniciais:

“Estou aqui porque não posso estar mais perto de vocês. Muito obrigado por estarem aqui. Obrigado pela sua decisão, e toda a sua generosidade de espírito. Na noite de quarta [15/8], após uma ameaça ter sido enviada a esta embaixada, e a polícia ter descido no prédio, vocês vieram no meio na noite para vigiar isto, e vocês trouxeram os olhares do mundo com vocês. Dentro da embaixada, na escuridão, eu podia ouvir equipes de policiais entrando no prédio pela saída de incêndios interna. Mas eu sabia que haveria testemunhas. E tudo graças a vocês. Se o governo britânico não jogou fora o Tratado de Viena na outra noite, isto foi porque o mundo estava olhando.”

Salvos-condutos podem ser dados ou negados a indivíduos. Mas não são necessários para que ideias e informações circulem livremente. Ainda bem.

https://www.observatoriodaimprensa.com.br/educacao-e-cidadania/caderno-da-cidadania/sob_os_olhos_do_mundo/

23 de agosto de 2012

A crônica de uma injustiça

No cipoal de delitos, ilicitudes e crimes sob julgamento no Supremo Tribunal Federal, objeto da Ação Penal 470 – afetivamente distinguida pela imprensa como mensalão –, a sua maior parte não resiste a uma simples busca por provas e evidências que façam jus ao estardalhaço com que o assunto vem manipulando corações e mentes, e despertando paixões claramente partidárias nos meios de comunicação.

Mas existe outra selva de ilegalidades pairando como sombra sobre esta AP-470: a forma escancarada com que pessoas de reputação bem abaixo do meio-fio recebem aura de credibilidade inconteste, seja na condição de delator, seja na de testemunha em sua dupla função de réu de crime confesso. Essa credibilidade recebe a moldura vistosa de uma imprensa que há muito deixou de se pautar pelos requisitos basilares do bom jornalismo – aquele que busca a verdade, que persegue os fatos, que é incansável em ouvir os vários lados envolvidos e que se abstém de exarar julgamento de valor antes que o tema investigado tenha reunido os elementos básicos que respondam de forma inequívoca a questões tão simples e essenciais à nossa atividade quanto: Quem? Onde? Quando? O quê? Por quê? Como? Quanto?

Caixa dois

Chega a ser irônico, não fosse gravíssimo do ponto de vista moral e ético, que a grande imprensa que insiste em meter os pés pelas mãos em sua sua incontida pretensão de trocar a função de jornalista pela de magistrado, mudando como em passe de mágica as mangas de camisa por pomposas togas, é a mesma imprensa que usa todos os meios ao seu dispor – e não são poucos, desde plantação de notas contendo ameaças de demolição de reputações até o prenúncio de nova avalancha de infundados escândalos – para evitar que jornalistas de revistas semanais como Veja (Grupo Abril) e Época (Grupo Globo) venham a depor na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) que investiga as nebulosas transações financeiras, escutas ilegais, aliciamento de parlamentares do Congresso Nacional, empresários de alto coturno e, também, o uso de informações obtidas – de forma criminosa, via escutas telefônicas – para abastecer noticiário apocalíptico com o intuito não menos criminoso de desestabilizar o governo de um país.

É a velha história se renovando: investigação boa é a que atinge os outros, que lhes macula a honra, expõe-lhe as vísceras na pedra dos mercados públicos, imputam-lhes crimes imaginários que causam repulsa à sociedade; e a investigação que não pode nunca existir é a que trata das relações ilícitas entre jornalistas e proprietários de seus abonados veículos de comunicação com o submundo do crime, tão próprios para regimes de exceção, para tempos ditatoriais, funcionando como vasos comunicantes de interesses sórdidos travestidos de informação. Nesse aspecto, o julgamento da AP-470 não passa de mero instrumento burocrático requerido pela grande mídia para dar validação às suas muitas teses de condenação às dezenas de réus indiciados em processo movido pelo Ministério Público da União.

Onde as provas? Ao longo de cinco longas horas o procurador-geral da República Roberto Gurgel, no dia 3 de agosto, leu calhamaço em que há excesso de juízos de valor e completa ausência de fatos probatórios. Na melhor das hipóteses, os depoimentos por ele pinçados com mãos de cirurgião plástico dentre as 50.506 páginas dessa Ação Penal recebem peso completamente indevido – o de prova material, violentando as mais rudimentares lições de Direito que aprendemos ainda nos primeiros meses de universidade.

Perguntam as pessoas que acompanham o julgamento, movidas pela curiosidade que somente tema com tão ampla repercussão midiática poderia suscitar: onde as provas? A vasta maioria dos depoimentos, colhidos às centenas nos autos da AP-470, são praticamente unânimes em desmentir, não confirmar, desacreditar por completo as teses da existência de crimes como formação de quadrilha, peculato, lavagem de dinheiro e compra de votos de parlamentares de forma regular e sistemática para atender a interesses políticos do governo federal com os parlamentares da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Muito ao contrário, os defensores dos réus referenciam essa enxurrada de depoimentos como robustas defesas dos seus clientes e, no máximo, encontramos a assunção de um crime quase comum a todos os partidos a que estão afiliados muitos dos réus: a prática do caixa dois durante a campanha presidencial de 2002.

Sem provas

Antes mesmo de se encerrar o julgamento do século, segundo querem fazer crer os órgãos de comunicação, encontramos o pisoteamento da justiça com requintes de crueldade, tortura sistemática, midiática e psicológica, movida contra, ao menos, uma pessoa inteiramente inocente. Tenho em mente a figura honrada e sempre altiva de Luiz Gushiken. O que o Ministério Público da União fez contra Luiz Gushiken é, por si só, um grave caso de má-fé mancomunado com injustiça patente. O que a grande imprensa fez com Luiz Gushiken é suficiente para escrever uma das páginas mais vis de nossa história recente: o ataque, o ataque sem provas, o ataque sem provas nem evidências plausíveis contra alguém que só teve um crime. O crime de ajudar o Brasil deixar para trás um longo passado de obscuridade e atraso civilizatório, de imensa disparidade entre poucos ricos e muitos pobres, e que ousou, bem além de nosso tempo, distinguir que a primeira etapa de qualquer governo popular não poderia ser outra que a de reconstruir a autoestima do povo.

Sim, a vítima do duplo massacre MP-mídia é mentor e patrono da mais importante campanha de publicidade institucional jamais ocorrida no Brasil – “O orgulho de ser brasileiro”, “O melhor do Brasil é o Brasil”, “Sou brasileiro e não desisto nunca”.

Luiz Gushiken demonstrou como ninguém, e ao longo de sete longuíssimos anos, tempo em que – vítima de terrível doença – sempre travou batalhas diárias por sua vida, que tem orgulho de ser brasileiro, que é um brasileiro talhado para não desistir nunca. Porque Gushiken há muito aprendeu com o pensador Shoghi Effendi (1897-1957) que “o maior tesouro de uma nação é o seu povo”. Portanto, o melhor do Brasil não são suas imensas fontes de recursos naturais, rios e florestas, imensa extensão territorial, petróleo abundante na camada do pré-sal. O melhor mesmo é o brasileiro.

Antes que os refletores deixem de buscar biografias dignas de serem iluminadas no episódio do mensalão, é necessário trazer a lume a “situação kafkiana processual” em que Gushiken foi engolfado. A começar pelo início, deve se destacar que a denúncia contra Gushiken foi recebida com votação apertada: quatro ministros da Suprema Corte – Celso de Mello, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Eros Grau – votaram no sentido de sua rejeição. Dentre os que votaram favoráveis à recepção da denúncia, ficou patente que não havia elementos mínimos a embasar a condenação. E é de ninguém menos que do próprio ministro relator Joaquim Barbosa o entendimento de que, à luz dos elementos constantes dos autos, “absolveria Luiz Gushiken, sem dúvida”.

Sob a claridade desses primeiros raios de luz incidindo sobre o ambiente de penumbra em que nasceu a AP-470, é importante destacar qual acusação pesava sobre Gushiken: teria ele, pretensamente, ordenado ao também réu desta Henrique Pizzolato que assinasse quatro notas que permitiram o adiantamento de recursos da empresa Visanet, ligada ao Banco do Brasil, para a agência de publicidade de propriedade de Marcos Valério, a DNA Propaganda Ltda.

Recebida a denúncia, de forma tão apertada, passou-se à fase seguinte – a que busca, demonstra e apresenta as provas que sustentem a denúncia. Nesse aspecto o assunto chega a ser constrangedor: tudo condiz para a total improcedência da ação penal contra Luiz Gushiken. Isso porque o próprio Ministério Público não requereu a produção de uma única prova que pudesse robustecer seu pleito condenatório. E também não arrolou uma única testemunha que trouxesse alguma substância, algum resquício de veracidade à destrambelhada acusação.

Ato de desumanidade

Não estamos aqui às voltas com um processo com características dignas do talento de Franz Kafka, autor dos consagrados O Processo e O Castelo? Mas o assunto está longe de se exaurir. É que sobressaem atitudes bastante questionáveis por parte do Ministério Público quanto aos fatos e reveladoras da improcedência da ação penal, contra Gushiken. Uma destas é o fato de o titular do MP optar por subtrair ao conhecimento dos réus e dos ministros que compõem o Supremo Tribunal Federal o teor de laudo do Instituto de Criminalística produzido antes da sessão de julgamento que recebeu a denúncia, que cuidava do tema e se afigurava mais que suficiente para afastar quaisquer indícios de coautoria por parte de Gushiken.

Esse laudo assumiu ares de clareza e transparência uma vez que nomeava quem eram os responsáveis, no Banco do Brasil, pela gestão dos recursos da empresa Visanet – e entre eles sequer estava o réu Henrique Pizzolato; E, não estando este, restava evidente ser absolutamente fantasiosa, além de claramente mentirosa, a afirmação de Pizzolato de que recebera orientação de Gushiken para que agisse em benefício da agência de publicidade de Marcos Valério.

Neste instante, qualquer concretude capaz de manter de pé a aviltante denúncia do Ministério Público ruía por terra, deixando, no entanto, graves sequelas na honorabilidade um inocente: “Como devolver ao travesseiro todas as penas lançadas aos ventos da calúnia e da difamação?” E não precisava ser assim. Sim, porque se o então Procurador Geral da República Antonio Fernando de Souza não houvesse ocultado do STF (e dos réus) o referido laudo do Instituto de Criminalística, dificilmente a Suprema Corte teria atuado pelo recebimento da denúncia, uma vez que já existiam eloquentes elementos para sua imediata rejeição.

Triste o país em que a administração da justiça é tratada de forma no mínimo leviana e arbitrária: é fato que após a apresentação da defesa pelos réus, o procurador-geral da República argumentou – em resposta à defesa que revelou estranheza diante do fato de ter sido Luiz Gushiken denunciado – que os fatos estariam sendo “apurados” pelo Ministério Público. No entanto, não tardou muito para o cidadão comum ficar ciente que nos autos da AP-470 não havia quaisquer traços, indícios, pontos ou vírgulas dando conta dos resultados dessa “apuração”. Mas, para o réu injustamente acusado, era como se séculos houvessem transcorrido. Porque para o inocente, cada dia a mais em que sua honra deixa de ser restabelecida ela é reiteradamente pisoteada. Essa forma de agir do Ministério Público da União é, antes de tudo, um flagrante ato de desumanidade, pois transformou o próprio processo em sua cruel punição.

Aos leitores que conhecem os meandros da administração da justiça, resta concluso que o MP se absteve de buscar uma única prova voltada à condenação de Gushiken – nem antes de propor a ação, nem depois de recebida a denúncia. E, tanto tempo decorrido, tanto sofrimento vivido, ficamos sabendo que o atual procurador-geral da República proclamou expressamente que não haveria provas sequer indiciárias em desfavor de Gushiken.

Tentação maior

E quanto à imprensa? Florestas de papel foram consumidas para atear fogo na reputação de uma pessoa inocente. Colunistas se revezavam em proferir sumárias condenações; responsáveis nos jornais pelos quadros “Entenda o caso… como nós o entendemos” devem ter se cansado de destacar seu nome dentre os “delinquentes que tanto mal causaram ao país” e de repetir pela milésima vez a foto desse senhor de estatura mediana e olhos puxados que, com humildade e percepção da real condição humana, nos ensinou que não pode existir virtude mais amada e necessária nos dias em que vivemos do que a luz que irradia do sol da justiça.

É oportuno lembrar a contundente frase dita por Luiz Gushiken em sua carta dirigida ao presidente Lula, em 16/11/2006, no momento em que se despedia do governo: “Na voragem das denúncias, abalou-se um dos pilares do Estado de Direito, o da presunção de inocência, uma vez que a mera acusação foi transformada no equivalente à prova de culpa”.

Se no ora distante 2006 essas palavras, impulsionadas por genuína indignação contra o mau jornalismo, não passavam de longo e solitário grito no deserto, agora, em 2012, elas assumem ares de profecia cumprida. O próprio processo foi a punição. E, para uma imprensa ávida de sangue e sempre disposta a terçar armas para manter em evidência seu escândalo da hora, não restou nem a obrigação ética de formular ao “condenado inocente” um reles pedido de desculpas. O mau jornalismo principia na confusão mental entre liberdade de expressão e libertinagem de imprensa, e não resiste à tentação maior de vestir a toga e, a seu bel-prazer, acusar, julgar, condenar.

Não passam, na verdade, de semiprofissionais do jornalismo. Infames, biltres e, em uma palavra, mequetrefes.

https://www.observatoriodaimprensa.com.br/educacao-e-cidadania/caderno-da-cidadania/a_cronica_de_uma_injustica/

15 de agosto de 2012

Medalhas que a imprensa não ganhou

Em tempo de Jogos Olímpicos somos tentados a pensar nosso ofício sob outros ângulos. E se, ao invés de jogos, alguns milenares como a maratona e o arremesso de martelo, e outros modernos como o basquete e o nado sincronizado, tivéssemos modalidades relacionadas com… a busca da verdade, com o fazer jornalístico?

Qual meio de comunicação teria a expertise do jamaicano Usain Bolt para, com sua imbatível velocidade, investigar um caso de corrupção, do começo ao fim, e encontrar o proprietário paulista daquela conta nas Ilhas Jersey? Não seria o meio impresso, porque este leva 24 horas, na melhor das hipóteses, para estar acessível ao público leitor. Poderia ser o rádio ou a televisão, mas antes de ser irradiado ou televisado haveria de passar por algumas instâncias burocráticas: encontrar a notícia, checar os fatos que lhe oferecem certa aura de credibilidade, receber análise de um editor, abrir espaço na programação e, finalmente, transmiti-la.

O Usain Bolt dos meios de comunicação seria a nossa cada vez mais imprescindível internet. O assunto nem bem chega ao palco da existência e já começa a circular em brevíssimas mensagens no Twitter, rápidas atualizações nas redes sociais e imediata postagem de um telefone celular para o YouTube ou um portal noticioso. Imbatível. Medalha de ouro no quesito velocidade.

Manhas e artimanhas

Qual meio de comunicação teria o talento único do Michael Phelps para, com sua rara intimidade com o meio líquido, bater sucessivos recordes nas piscinas que transformam candidatos em autoridades eleitas? Não seria o meio impresso. Nem jornais nem revistas auscultam a opinião pública, limitam-se tão somente a alardear em suas primeiras páginas e capas os números que favoreçam suas preferências eleitorais. Se os números das pesquisas de intenção de votos referendam o “candidato da casa”, espaço nobre lhe será assegurado; caso contrário, estarão nas páginas internas emolduradas por aspectos negativos colhidos na mesma pesquisa, como índice de rejeição. Emissoras de rádio tiveram seu tempo áureo nos anos 1950/1960, e seu protagonismo existiu nos primórdios das campanhas eleitorais após a descoberta do uso intensivo dos meios de comunicação de massa para alavancar candidaturas.

A medalha de ouro desse quesito, qual Michael Phelps, 22 vezes alçado ao pódio máximo, é a televisão. E o pódio são os debates e suas edições. As várias modalidades de esportes aquáticos representam boa mistura de telejornais direcionando seu esforço jornalístico para enaltecer este ou aquele candidato, ilhas de edição funcionando a todo vapor para ganhar na edição o que foi perdido no debate. A eleição de Fernando Collor de Mello (1989) e a caixinha de surpresas em que se transformaram os últimos debates promovidos pela TV Globo entre os candidatos do PRN e do PT cabem à perfeição nesta modalidade.

Qual meio de comunicação teria a impressionante pontaria no tiro com arco individual do sul-coreano Im Dong Hyun, legalmente considerado cego, e ainda assim capaz de desvendar interesses políticos e financeiros existentes nas colunas quase sempre passionais de nossos especialistas em política e economia? Este ramo alcança jornais, revistas, emissoras de rádio, emissoras de televisão. Em todos esses veículos temos os autoincensados colunistas: nos impressos utilizam linguagem desabrida, a um passo de briga de botequim; no rádio abusam das ironias para massacrar desafetos em evidência e na televisão insistem em ser um misto de Paulo Francis com Glauber Rocha, resultando sempre em pastiche de péssima qualidade.

Quem merece a medalha de ouro do tiro com arco é a blogosfera, também conhecida por sua maior vertente, os tais “blogues sujos”. Estão sempre subindo ao pódio, desmascarando uns e outros, descobrindo manhas e artimanhas dos eternamente protegidos pela complacência da chamada grande imprensa. Grande, explique-se, apenas no número de seus exemplares diários, no número de sua audiência radiofônica/televisiva; mas pequena, irritantemente diminuta, no número de suas famílias proprietárias.

Realidade editorial

Qual meio de comunicação se igualaria a Robert Scheidt, nosso maior medalhista olímpico da história, que já conquistou duas de ouro, duas de prata e uma de bronze na classe Star da vela, se a modalidade incluísse respeito à diversidade de opinião, ao pluralismo de ideias? Aqui temos uma das competições mais difíceis de disputar. E isso ocorre devido ao extremo grau de monopólio de nossos meios de comunicação: os donos de um grande jornal também são donos de rede de televisão com avassaladora audiência em relação aos poucos concorrentes; e também são donos de rede de emissoras de rádio, revista semanal de informação, portais na internet e tevê a cabo.

E este é apenas um dos casos de propriedade cruzada. Outros detêm a propriedade de meios impressos e emissoras de rádio; meios impressos e tevê a cabo. E todos se fazem representar na web com portais que utilizam o melhor que existe em tecnologia digital, com imenso espaço para armazenar informações e o estado da arte em interatividade e familiaridade com o mundo virtual.

Esse monopólio escancarado, sempre a postos para colocar o dedo em riste nas questões mais lídimas da cidadania, tem sua própria agenda e, obviamente, reza seu próprio credo – defesa intransigente de um Estado mínimo, compromissos com o mercado financeiro (de onde saem os nutrientes para bancar seu funcionamento regular, além dos polpudos lucros), compromisso com políticas excludentes (aquelas que não aprovam cotas raciais ou programas como o bolsa-família), liberdade de pressão e apoio substancial à opinião publicada por seus pares, formando um corporativismo cada vez mais lesivo aos interesses de uma sociedade livre, democrática, plural e inclusiva. Exemplo gritante é que mesmo os saturados boxes “Entenda o caso”, tão corriqueiros em nossos jornais de maior circulação, refletiriam bem mais a realidade editorial se fossem nomeados corretamente como “Entenda o caso assim como nós o entendemos”.

Nesse quesito não teríamos ninguém no pódio – como, aliás, não temos na vasta maioria de esportes em que nem mesmo chegamos a disputar um honroso 4º lugar.

https://www.observatoriodaimprensa.com.br/feitos-desfeitas/medalhas-que-a-imprensa-nao-ganhou/

08 de agosto de 2012

A imprensa seletiva

A imprensa brasileira pode ser acusada de tudo, menos de não ser seletiva. O cardápio de notícias apresentado diariamente à sociedade brasileira também pode ser recriminado por tudo, menos pela repetição do prato principal. Refiro-me à Ação Penal 470, no linguajar jurídico, e ao mensalão, no linguajar dos jornalões.

A depender da grande imprensa, o dia 2 de agosto de 2012 passa a ter mais importância que o 7 de setembro de 1822 e, por isso, merece ser eternizado em nosso calendário cívico como a verdadeira data da independência do Brasil.

É aqui que começa a seletividade monocórdia, a opção desabrida pelo que merece ser visto como o início de uma nova era para os brasileiros: a imprensa julgou o assunto antes do Supremo Tribunal Federal e espera deste nada menos que a sua validação. Exarada a sentença nos noticiários das emissoras de rádio do Sistema Globo de Comunicação, proferida repetidas vezes do alto da audiência de que desfruta em todo o país o Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão, impressa em alto relevo em capas, páginas coloridas e colunas de fofocas que pretendem tratar de política da revista Veja, o carro-chefe – um tanto avariado, é verdade – da Editora Abril, em tudo o foco é um só: a Ação Penal 470 só desembocará em julgamento justo se dispensar o arcabouço jurídico a ser brandido pelas diversas teses de defesa, e se desconsiderar os aspectos técnicos mais comezinhos e indispensáveis a uma ação jurídica dessa envergadura.

Dois golpes

Desde os últimos dias de julho parecemos estar vivendo aquela última semana de dezembro de todos os anos: retrospectivas para um só gosto. Explico: a título de informar as pessoas sobre o julgamento do mensalão, são pinçadas não mais que as cenas que demonizem os réus, marquem suas frontes com ferro em brasa a insculpir a palavra “culpado”, imputem-lhes todas as iniquidades não republicanas e expiem o Himalaia de atos condenáveis que tão somente nossa legislação eleitoral poderia conter.

As retrospectivas do Jornal Nacional e da rádio CBN, ambos veículos de grande audiência, pertencem à família Marinho. A mais chamativa retrospectiva dos veículos impressos tem a chancela da Folha de S.Paulo, pertencente à família Frias. E os mais variados “renascimentos” do mensalão têm como sala de obstetrícia as redações da Editora Abril, de propriedade dos Civita. É impressionante como o monopólio dos meios de comunicação do Brasil é capaz de competir na batalha por corações e mentes em condições de paridade com o Poder Judiciário e sua mais elevada instância, o Supremo Tribunal Federal.

Chama a atenção como a parcialidade no noticiário pode ser nociva à própria ideia de democracia. E como o pensamento único pode ser danoso, além de cruel, à realização do ideal de justiça. E a AP-470 deve merecer, em futuro não muito distante, alentadas teses acadêmicas sobre a natureza e amplitude da influência que os meios de comunicação podem ter em um país que se diz moderno e, no entanto, se comporta de maneira partidarizada e sempre contundente graças ao elevado estado de concentração e aos efeitos pernósticos de um monopólio cada vez mais insustentável.

Enquanto isso, agentes do Direito, em especial do Ministério Público, sentem-se insuflados pelos meios de comunicação a subverter o real significado de eventos históricos de nossa tumultuada vida política. Para ilustrar à perfeição, encontramos ampla repercussão na imprensa dessa injuriosa frase à história do Brasil, proferida pelo procurador-geral da República Roberto Gurgel: “O mensalão é o maior escândalo da história do Brasil”. Será mesmo? Ou por trás de tão absurda declaração não existe a vaidade escancarada de se sentir partícipe de evento de tão grande magnitude?

Ainda bem que o ilustre procurador não é autor de livros didáticos de história usados por estudantes do ensino fundamental; do contrário, milhões de crianças e jovens aprenderiam que o processo em vias de julgamento no STF eclipsou em importância nada menos que o escândalo de 1954, urdido por Carlos Lacerda (provavelmente o melhor aprendiz de Nicolau Maquiavel da política brasileira recente) para derrubar Getúlio Vargas e que, ao final, custou-lhe a vida, a eternização da expressão “mar de lama” e a beleza poética da carta-testamento do presidente suicida, certamente um dos mais importantes documentos políticos da história do Brasil.

Considerar o mensalão “o maior escândalo da história” é transformar os dois golpes de Estado ocorridos em 1955, ainda na esteira do suicídio de Vargas, em não mais que tempestades em copo d’água.

Dever divino

Poderia aproveitar o gancho e discorrer por alguns outros episódios que facilmente seriam impostos pelos fatos para ganhar a medalha de ouro, o lugar máximo do pódio de nossas crises e escândalos políticos: a chamada Intentona Comunista dos idos de 1935; o golpe militar que apeou do poder o presidente João Goulart e instaurou uma ditadura cruel (nada de “ditabranda”, como preferem alguns) que ceifou 20 anos da vida brasileira, exilou intelectuais, podou a criação artística, instaurou julgamentos sumaríssimos nos famigerados DOI-CODIs; e as imagens ainda vívidas da esteira de escândalos que envolveram personagens carimbados de nossa história recentíssima, como Fernando Collor de Mello, Pedro Collor, PC Farias, os Jardins da Babilônia recriados na Casa da Dinda, o Fiat Elba amarelo, a Operação Uruguay – todos episódios que culminaram com o primeiro impeachmentde um presidente do Brasil, legitimamente eleito e legitimamente destituído do cargo.

Quer dizer, então, que nenhum desses eventos nefastos e seus terríveis desdobramentos não passaram de meros exercícios mentais, meros esboços de escândalos e crises políticas ante a AP-470? Sim, mas na abalizada visão jurídica do procurador-geral da República Roberto Gurgel tudo isso foi, vamos dizer, fichinha. A tese do senhor procurador-geral é por demais impertinente e falseia a história como um todo – porque o que falseia a parte, falseia o todo.

Nada contra o procurador-geral se equivocar. Nada mais natural, nada mais humano. Mas não deixa de ser curioso observar que esse seu equívoco de julgamento é realmente fichinha se comparado aos longos três anos que Sua Excelência consumiu para se posicionar ante os robustos resultados apresentados pelas operações da Polícia Federal de nomes Vegas e Monte Carlo, e que culminaram na prisão do meliante-mor Carlinhos Cachoeira, na cassação do mandato do senador Demóstenes Torres, e que deve levar ao fio da navalha o mandato do governador goiano Marconi Perillo, além de manchar reputações de personagens de menor projeção política.

O problema é a forma entusiástica com que a grande imprensa encampou a declaração do procurador-geral: repercutiu em primeiras páginas, foi à escalada dos telejornais noturnos, recebeu o destaque que as frases grandiloquentes costumam ganhar por parte dos ditos colunistas de política. Mas não ficou por aí. Com essa frase sobre “o maior escândalo da história” se turbinou na mídia uma nova fase do game “Detonando o mensalão”: retrospectivas, operações Lázaro (aquela que ressuscita mortos-vivos políticos) e se colocou, do cabo à lâmina, a faca nos pescoços de nossos supremos julgadores, os integrantes do STF.

O poeta e filósofo romano Quinto Horácio Flaco (65 a.C.-8 d.C.) foi contundente quando afirmou: “Ousa saber! Começa!” (Sapere aude!)

E ousar saber e começar nada mais é que o irrecusável convite a que saiamos da estagnação mental e partamos para o conhecimento das leis, deixando ao largo todas as pressões – desde aquelas que gritam mais que mil comícios do III Reich nazista até as que, ao amparo da liberdade de imprensa, exercem seu divino dever de usar a liberdade de pressão para fazer valer suas teses, ideologias e mesmo anseios tardios por vingança, aquele velho prato que na literatura anglo-saxã sempre deveria ser servido frio.

https://www.observatoriodaimprensa.com.br/jornal-de-debates/a_imprensa_seletiva_1/

02 de agosto de 2012